sábado, 8 de dezembro de 2012

Muro


A obra continua. Em meio a marteladas, cimentos, andaimes e concretagens, uma massa azul locomovia-se no atraso do urgente, fazendo mais um prédio riscar um outro azul, este leito de um violento sol, a destoar os capacetes amarelos dos obreiros. Mais um, junto a imensos outros, que erguem, entre pistas, pressas, shoppings e sangue, o Leviatã cinza. E Seu Neno, nos seus cinquenta e poucos anos, vem alimentando esse monstro, que devolvia os ossos de cestas básicas, décimo terceiro e “a dignidade do trabalhar”, como ele, otimista, repetia aos colegas. Pessoa de boa calma, olhar manso, mãos de exatidão e ouvido atento, Seu Neno, responsável, apesar do atropelo das ordens, sempre esmerava nos ofícios. Mas levantar muros era seu especial fazer: era o construir em si, seu reino de grandes mãos vestindo a Criação em cada encaixe e cada equilíbrio. Ali se sentia maior, sem farda, capacete ou limites. Mas havia sempre a volta ao chão, às botas sujas, à barriga do monstro.
- Neno! Venha cá! Agitado e suando mais do que todos, o engenheiro. E Neno, que sempre soube o que era tratar com eles, prontamente descansou sua pá no chão (deixando nela sua tranquilidade), atendendo ao chamado.
- Chamou, doutor?, já com o capacete em mãos, na altura do peito (pequeno escudo para sua sensível região).
- Não sei por que esse prédio ainda não caiu! Aliás, não sei por que você ainda não caiu de uma merda desses andaimes! Só burrice justifica isso! Por acaso você pintou a parede da ala C?
- Sim, doutor... A voz se perdia nos pregos tortos, jogados pela obra.
-Pintou o que, caramba?! Pintou de vento?! A merda da parede ainda está lá, só com o reboco! Tá vendo algum palhaço aqui?! Acha que é tudo no seu tempo, velho idiota?! E você não está ouvindo uma tábua não! Olhe para mim!
- Senhor, a parede está pintada, de branco, como você pediu ontem. (era um silêncio que afirmava.)
- Eu disse ontem isso, e hoje eu anotei na droga da escala qual parede era pra ser pintada! Aí você vai pra outra! Você pinta o que quer agora, Picasso?! Você não sabe chegar na merda da escalar e ler o que está lá?
Não se via mais Seu Neno. Havia uma sombra azul, carregando um capacete cujo peso era de vidas. O homem zeloso com seu trabalho via, na sua mente, a imagem de sua mão, calejada desde cedo com o trabalho. Novo, era o suporte de uma mãe sem marido e de braço forte. Novo, na feira, carregando caixas de laranjas. Novo, aprendendo a vender e desfazer pechinchas. Novo, ajudando seu tio, pedreiro, a construir sua casa. Novo, vendo o mundo feito dentro daquilo que suas mãos levantavam. Novo, carregando o caixão da mãe e, no outro braço, a irmã mais nova. Novo, aprendeu a envelhecer.

Mas novo, sem ler. Um silêncio que cega os olhos. Anda nas ruas e cada palavra, cada letra, torna-o um mais-um na cidade. Imagina que cada palavra seja um bloco, e um misto de desejo e desespero corta-o por toda a vida, pois é o muro inconstruído. O seu pior paredão, de reboco cinza e vazio. Tremia ao se defrontar com um papel riscado e fazia da vista seu triste álibi. E quando tirou sua carteira de trabalho, chorou. Não poderia sequer colocar seu bloco-de-eu no que era seu. Uma marca de dedo selou o contido em si, trágico segredo. A mão que não suportava um lápis, e que fazia deste objeto a lança de sua cegueira, de seu só-estar, irresolvível, exilado, engolido.

- Doutor, eu não pintei a parede certa porque não sei ler. Não pude ver o que o senhor deixou na tabela. Me perdoe.
(O capacete não protege de blocos saídos de bocas.)
- Ok... Ok... Mas abrisse a porcaria da boca e me falasse que não sabe ler. Não ia imaginar que contratassem analfabetos nessa construtora. Faz o seguinte: quando tiver mudança de escala, peça pro Firmi... Firmino! Venha cá! Olhe: mudança de escala, fala pro Neno o que ele deve fazer. Ele não sabe ler e não quero ficar me esquentando com isso, Certo? Pode voltar. E você, Neno, já tá avisado. Pode ir.

A pá, de volta à mão de Neno, carregava o som dos caminhões, martelos, serrotes, ordens e da rua, desgastada e com o cimento seco que sempre resta. Uma pequena lágrima que caísse nela seria facilmente engolida pelo cinza. Palavra disforme, a lágrima: que todos escrevem, falam, porém, cega, uma grande maioria deslê. Desfaz.