sábado, 3 de dezembro de 2011

Cristal


Um copo que pouco importava na mesa de um tranquilo bar. Havia sido deixado pelo garçom, que se passou no número dos confrades. Típico vidro que aparentava ter sido antes recipiente para algum requeijão ordinário ou outro produto qualquer, levantando a incerteza de sua original função. Pois lá estava, vazio: ninguém chegaria para dar serventia ao desnecessário objeto, tampouco alguém da mesa lembraria sua presença. Os cuidados se voltavam a copos cheios e garrafas a somarem-se ao pé da mesa e na bandeja do garçom, solicito por conta do entusiasmo dos clientes. A sua sincera transparência tornava-o invisível, útero infértil, vazio em sua morta alegria. Por mais que estivesse ali.
  
Porém uma mão aproxima-se cuidadosamente e, resoluta, segura o copo disposta a preenchê-lo. O tédio ébrio fez do vidro seco vaso, agora tonto no suor frio da esperança de uma gota, ao menos. O tato quente tirava o gelado da espera na mesa cambaia, tal qual cadeira de balanço a guiar os velhos entre passado e presente no pêndulo da memória. A boca, sempre aberta, parecia até sorrir, vendo a garrafa inclinar-se para depositar parte de seu interior.

 Porém o descuido: a mão, na confusa embriaguez, perde-se na coordenação e falta de firmeza. A garrafa ainda deixa pingar gotas na borda do copo que, inevitavelmente, desliza pela palma, rola pela mesa – inutilmente sendo amparada por outras mãos – e se desfaz no chão, espalhando os restos por cantos incertos, que a vassoura não achará. 

Segundos de atenção são roubados pelo copo: os presentes na mesa, recuperados do susto, fazem as costumeiras graças daqueles que, na alegria inebriante do álcool, não pensam em restos e cortes. A mesa continua a abrigar garrafas e brindes. E algumas gotas ainda escorrem dela, pingando no cimento um brilho que se confunde com estilhaços do frágil copo.




segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Da face, a noite



Perdi o sono, a noite e você.

E a distância entre nossos olhares

Apenas o silêncio media.


Vi meus olhos chamarem no velho espelho

Meu rosto gasto, esquecido pela sua voz doce,

Que brilhava a luz de seu sorriso.


Minha cama agora é o reflexo a me encarar:
reviro-me, estremeço, choro.

Enquanto a noite perdida arrasta-se


Nos passos que te levam.




quinta-feira, 6 de outubro de 2011

O último ladrão


Espantado, olho ao lado do meu corpo

o denso Vazio que fumava meu sorriso.

Era a noite, mal-educada, que tocava

em mim a ausência, gargalhando aquilo

que eu trancava em meus dias.


E quanta arrogância no seu rosto,

que me acordava aos sustos, cuspindo

desesperanças e velhos espelhos,

enquanto, fraco e surdo, encaro-o,

deportado da brandura que me iluminava.


Tirando o cigarro da boca, pôs-se

em minha frente – rígido.

Travou meus passos, apontando os olhos

para minha fatigada face.


Estáticos. Silêncios. Frio.


Do nada feito, porém rei na longa noite,

o Vazio expandiu-se, a confundir-se

com o Universo. Postes, luzes e estrelas,

engolidas pela fome negra, apagaram-se.


A noite não devorou meu tremor e meu frio,

para marcar-me a memória do que ela deixou,

do que me levou. Do que eu a deixei levar.


E minhas mãos, a agarrar lágrimas e desesperos,

confundiam-se com a noite, em meu rosto coberto –

de dor, vergonha

e medo.


Estava só. Nem alma ou redenção surgiam.

(Depois do terceiro dia restaria apenas cinzas

do cigarro. De mim.)


Estava só. Tocando o etéreo da esperança

que pousava em meus ombros em tinta falsa,

escorrendo de um urubu.


Queria gritar, destemperado,

enlouquecido pela fúria!

Xingar os céus mentirosos,

pintados de azul para rir por dentro

o vácuo de nossa insignificância!


Queria esmurrar a dor,

fazê-la doer mais e mais,

até meu sangue lavá-la,

tal pecador a barganhar paraísos

com deuses mesquinhos.


Mas estava só.
E até meu coração – mudo – foi-se,

deixando-me o eco do que um dia sorri


no Vazio do mundo a me digerir.




domingo, 4 de setembro de 2011

Alforria (ou Para alguns, indiferença)



Engana-te se te pedi os olhos para que visses meu coração. Peço calma – por ti, por mim –, nada mais. No entanto, sinto vir de ti a insânia que inunda de sangue teus olhos, sem perguntar se carrego lenços ou alentos.

Engana-te se te fiz sentir inteira. Foram tuas lágrimas vermelhas que turvaram teu corpo sedento de Todo. A seca que carregamos apenas nos permite gotas para dar mais um passo. Não toda a estrada.

Engana-te se um dia algo falei. Pois se falasse, seria em teus olhos, boca, ouvidos e em tudo mais que pulsa. Mas apenas foi o vazio. Que sempre mostrou-se impossível para teu sangue – tua saliva de suicida – que escorria nas rugas do que outrora era vida. Era liberdade.



terça-feira, 23 de agosto de 2011

Do cansaço

Às vezes, me canso de tudo.
Há vazio e inércia na constante fadiga,
nos fingimentos de sorrir.

Um sol quase claro mantém-se sobre as faces-poças,
sujas e surdas – déspotas-bufões a dançar algemas em minha boca.

(E eu queria a liberdade de chorar meu céu nublado
em anoitações de versos que só minha chuva ouve.)

Por isso cansar é minha melhor incompreensão.
É quando desconverso as horas e a tempestade
me sopra contra meu peito-rochedo.

E todos em volta, afundados em rasa vida,
pedem-me, gritam minha calmaria, perdidos.

Mas estou cansado demais para botes ou mensagens em garrafas.
Minha nau viaja em meu oceano, distante de ilhas paradas,
punhados de pó amarelo dos sorrisos que outrora me mentiam faróis.

Minha bússola são tormentas,
e da calma morte
do sempre da vida,
estou longe.


***

Mas tudo isso pode ser apenas cansaço de hoje.
Nada mais.




sábado, 20 de agosto de 2011

O Barco



Navegamos em estradas enrugadas,

cujo norte, em mistério azul, esconde-se.

Pés fincados no Barco, cortando o leito do Tempo,
de dobras onde a memória trilha afluentes.

Se nossos pés soubessem cavar, virariam raízes.
Mas nasceram virados pra frente, proas da vontade.

E cavar pode ser a secura, foz derradeira
de querer fazer nascer terra onde o Rio impera,

e afogar-se no abissal da ilusão, enterrando-se na mais
solitária ilha. Desterro de náufrago que vê tormentas em travessias.



terça-feira, 24 de maio de 2011

A uma pequena que chora

Para Yasmine Spínola


Quando vi a dor arder minhas mãos, vinda
de teu discreto choro, desejei o castigo
de pregos em meus pulsos cegos de cuidar.

Impotente em minha cruz de ofícios te desvi,
pequena, que mal suportava a triste enchente
que, muda, te transbordava. Me afogava.

Agonizo agora na secura trêmula de minha alma,
queimando meus olhos inúteis de tocar. A derramar
minha única gota que insiste, no eterno de te sentir.

Minha face injusta esqueceu-te, e agora chora,
pois tua súplica foi mero pó na minha tormenta
de silêncios a te destruir, doce pingo de alvorada.

Mas sei do grande rio de tua vida, tropeçante em sombras,
porém firme, tal ampla trilha de duro chão, onde tu,
pequena, segues. Tuas lágrimas contarão teu mar de vitórias.

Vejo minha grande ilusão em pensar-me consolo, calmo regato
a lavar teu pesar, e seco a gota de lamento por ti. E, então,
derramo meu sangue em suas águas – teu perdão, minha oferta.



quinta-feira, 21 de abril de 2011

O chão da alma



De súbito, a amplidão acenou em mim a esperança,

inundando o clarão a fraturar as sombras de meus olhos gastos
de se fechar, que, por pouco, perdiam-se no estagnado.

Ignorada é a dor que antes trilhava desfiladeiros na turva jornada:
a Morte, na velha carroça que em minhas mãos insistia,
era a guia dessa densa noite de desterros.

Porém, interminável na vista, o planalto
marca nos meus pés a indomável rota, resoluta e mística.

Eu, cego de luzes, sou envolvido pelo Tudo a firmar meus passos,
sujos da grande terra fértil, tingida pelo vermelho do intenso sol.

Agora céu e chão – unidos no voo incerto e vivo – levam
as areias do tempo (o mais esquecido longe),
e eu, nos ventos da Iluminação, sigo para o mais inóspito solo –
que de verdes arboresce e de auroras avermelha-se:

a terra assentada em minha alma, desabitada no silêncio do [desvisto
e que, na sede de êxtases, abre-se, num claro peito, que em [venturas
planta-me num outro nascer, alado, incontido. O Infinito.



domingo, 17 de abril de 2011

A ilha



Aquela ilha, longe, desvista na imensidão,

acena raros coqueiros secos, sombreando
a areia antiga e gasta de tempos.

Havia passos marcados, esquecidos de caminho,
_____a estranha inércia a vencer maremotos,
_____o vento movendo as folhas ressequidas.

O sol reverbera no céu o azul movente do mar,
impondo a vida nas ondas a brilhar:
peixes dançam cardumes e corais desenham jardins
por todo o oceano.

Estática, a ilha esquecida, ignorada.
iluminada pela mesma luz, fértil nas águas.
Porém a desabitada areia, amarela de passados,

afunda nas profundezas uma grande terra,
outrora carregada de todo verde e toda alma.

E que agora é apenas rastros do que marcado está;
é apenas a ilha, presente, vazia, a imóvel manter-se,
____________________________a, ignota, perder-se.



quinta-feira, 7 de abril de 2011

Sísifo aniquilado



O insustentável claustro da dor cresce,

enrijecendo ombros caídos de penar
a própria andança em mundo vasto
de montes feridos de largas distâncias.

Um espelho desenha-se na grande rocha,
riscando a face cinza. Eram os olhos do perder
e a vida vencida que subia, subia. Vencida.
E as mãos, duras, apenas a rocha empurravam.

Havia o topo, do maior sol, iluminando o “se”.
Porém, curvado, o crânio suado vertia-se
na ínfima força, em torturante penumbra.
E as lágrimas escureciam-se na terra sem luz.

Os braços, gastos de ordem, tremiam o vazio
a contrair músculos, ossos – e o peito.
E a pedra era maior que o monte, que o sol –
que o sangue que desesperadamente escorria.

O ar faltava, tanto quanto o topo não visto.
Os olhos, embaçados, focavam, perdidos,
o desfigurado reflexo. E Parada. A pedra.
Congelado. Sísifo. No martírio ofício.

Viu-se nos dedos desanimados, na boca
aberta e muda, nos ouvidos órfãos de pássaros.
E, nos rios vermelhos que cortavam sua face,
viu a vida descer, feroz, sobre sua rasa alma.



segunda-feira, 14 de março de 2011

Inocente

“Acordar é um pouco de morrer.”


Sonhando a deixar o doce colorir os passos,

levava em si o berço de sua pequena aurora,
pendurada em sóis plásticos de um brinquedo
que no alto desenhava a cantiga a leve soar.

Eram os olhos fechados a ver o arco-íris, a dar
à língua o gosto de viver, lambuzando dentes
em sorrisos brancos de nuvens. E o sol, acima,
girando, girando, na brisa do entardecer.

E fechados ficavam, sem saber do falso do sol,
que sorria o opaco desenho de sua cor, frágil
adorno a ninar um sono. Pequeno, ínfimo –
e profundo, pois não via o branco vácuo do acordar.



terça-feira, 1 de março de 2011

Quando os astros disserem Gêneses



Trágicos tentamos, na longa sorte do querer,

fazer do abraço o sempre da esperança.
Pois éramos esquecidos do Instante.

Fizemos da antiga mácula o deposto sentir
do que havia sido outrora memória frágil
de estilhaços de perdas vagas e fundas.

Sentimos, juntos, o que inexistente insiste
no vácuo do Agora, o que infringe a lei maior
do Universo, presente de completo infinito.

Destinos, cada um, perdidos no Espaço
errante entre mãos silentes de afetos
e de tatos gastos do frio vazio de nula órbita.

Mas quando, resolutos, meteoros cortarem o céu,
quando os astros disserem flores no campo azul
de trilhas abertas da gritante e viva aurora,

e regarem o Vazio com o fogo da gravidade,
e a última queda for o calar do Tempo, seremos,
novamente, o Nada, Um – desconhecidos

da Distância, ignorados do Zero Absoluto.
Seremos nós, unidos na matéria presente
no fogo: a Gênese infinda do mais puro Eterno.



quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

O azul rúbeo

"O resto é soedá."
Manuel María, em Terra Cha*

Todo o encanto que bebeu meu sangue,
vertendo a oferta da alma em sujo chão,
resta na seca carne, pálida, vagante na sede
de um dia se encontrar no vermelho que resta.

E, ébrio de Nada, desfaço-me nos rastros da andança
que dia algum existiu, indagando ao céu quaisquer auroras.

O vasto azul esvai-se vazio no tropeço da minha surdez de querer,
que escorre a dor a tingir a terra e rasgar os pés já secos de norte.
A visão perde-se na mistura das cores, na aquarela trágica do [pôr-do-sol,
e o ar mata a última gota de vida a agonizar num corpo esquecido [de lágrimas.

O silêncio prolonga-se na aridez de só o vácuo enxergar.
No cromatismo da morte, alma e sol se vão, mentindo o mito do [Retorno
enquanto meus olhos, cegos, secos, encerram-se, como o peito.

Que se esquece na noite eterna.
Que se perde na infinda espera.



*Clique no nome do poema de Manuel María para lê-lo e ouvir sua versão musicada.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Despedida do navegante

“Dois navegantes perdidos no cais...”
Lenine, em Distantes Demais

Não sou a calma para que deites teus olhos:
aqui estou, mas as tormentas do Agora
vibram os velames frágeis de meu andar.

Veja as águas sem terras, sem ao menos ilhas ignotas.
Sinta o vento em ti uivar o choro da erma odisseia
que de ti me cortas e onde afundo, surdo por sereias.

Não faças desta podre proa teu horizonte, pois, fatal
e constante, o Tempo a afunda. E te inundará com as
lágrimas que carregas – o mar onde nunca poderei navegar.

De ti ficaram os pés descalços na primeira areia em que pisei:
ficou o punhado que trago num mar sem Norte, sem futuro.
Porém são as águas que me embebedam, nômade.

De mim não deixo mais do que essa gota de maremoto, essa
maresia a turvar teu ar e teu peito. E me despeço, triste,
no impossível de dar-te a maior bonança, que em mim se ausenta.



segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Mênade



É o Inferno que veste tua voz amarga

e destoa da garganta o suspiro doce.
Se guardas o nó da fúria no fôlego que falta,
afoga-te nessa tormenta de silêncios.

Tire da tua mão a ridícula inquisição
do pecado que apenas teu dedo aponta.
Limpe dos olhos as lágrimas que borram
a falsa inocência de teu ínfero fogo.

Vire a tua cara para a distância, a maior:
ausente, marca alguma em ti deixarei.
Teu ódio é ver no Sul o Norte, encruzilhada
de tragédias, recuando ao abismo claro

do teu desejo turvo que no “Se” evapora,
fazendo-te inalar o cianeto trazido no pó
da estrada que segues, cega, apodrecendo
no que nunca terás e no que, maldita, me tiras!



sábado, 8 de janeiro de 2011

A cama órfã



O vento a ferir de frio o triste peito

grita o coro errante da noite longa.
E ela – vejo! – a dançar o intocável
no sopro da eterna madrugada.

A cama velha range a insônia
de quem no silêncio se encobre.
O uivo vindo da janela geme
o pesadelo, que ao meu lado pousa.

E ela, vaga, desliza pelas folhas secas,
pelas gotas cadentes, pela vida a gelar,
despedindo-se no último tremor a me tocar,
a despertar-me pro trágico agora do Nada.

Cobre-me o véu noturno do sonhar
enquanto nina longe meu mais doce sentir:
meu berço entoa a cantiga surda do nome
que em corpo jamais em mim deitará.