domingo, 28 de novembro de 2010

Quando valsares

"Por não te possuir, tendo-te minha
Por só quereres tudo, e eu dar-te nada
Hei de lembrar-te sempre com ternura."
Vinicius de Moraes


Quando valsares, peças desculpas à Matéria,

por ferires limites e superfícies.
(Desconhecida ela se faz da tua sinfonia.)

Quando valsares, lamentes pelo ar,
que rouba, viciado, o cantar de teu perfume.
Na delícia do sopro teu ritmo descansa.

Quando valsares, ignores o chão torpe,
raiz do mundo frio e injusto,
de olhos cinzas à sua doce dança.

Quando valsares, não chores por outros
que lhe trombam com a rocha do silêncio.
(São ouvidos mortos, de ermas vagâncias.)

Quando valsares, não digas nada para ti:
conheces bem a música que marca teu peito.
Teu corpo, de pés bailarinos, pulsa maiores auroras.

Quando valsares, apenas Valsa sejas.
A murcha substância do marchar definha
no teu eteno passo, a entoar o Tempo e ecoar a Vida.



quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Quando despe o segredo a carne

"De tão sentir o amor não sei dizer-to,
Antes, se falo, só dos prados falo
E em dueto comigo
Discurso o amor."
Ricardo Reis


O incauto peito, outrora escondido em azuis venturas,

agora tem despido o segredo, e inversos
de um estranho receio envolvem a inevitável nudez.

O despudor desfila clareiras em um corpo
que, no labirinto da trágica ânsia pela veste
fria, cobria-se do ornamento claustro do eu.

Cruel o vento ergue os pêlos, indomáveis células do sentir,
tingindo o vermelho no corpo agora coberto de si.
No sopro a passear pela vasta relva rubra, olhos desfilam
na viva terra, e o castanho olhar semeia-se.

O receio desfolha-se esvoaçante no avivar,
no plantar na pele, que pulsa, vibrante e aberta,
na comunhão com o incontido da descoberta:
no germinar de corpos – tornados fulminantes –,
floresce o grande campo do mais desnudo Desejo.



sábado, 20 de novembro de 2010

Talvez deva eu aprender com o instante

"A Eternidade é muito longa.
E dentro dela tu te moves, eterno."

Cecília Meireles

Talvez deva eu aprender com o instante

o que deveras falso se eterniza ausente
e findar a passada erma em obscura trilha.
Porém errante e incauto insisto – des(a)tino.

Os passos, instantes de descompassado solo,
calçam as pegadas do etéreo urdir:
pulsante e vaga, a ponte ergue-se rota
e o incerto sopra a derradeira queda.

O instante é tábua frouxa da trágica
ponte, que distante me faz do outro lado.
E, errante, a caminhada persiste, em si,
silente e tímida, em temerosos embalos.

Mas (per)sigo. Que cada pisar seja lato campo
de fofa terra; que cada andar seja a breve brisa
da fatal queda, esquecida e vivida no voo
de pés que de calos elevam-se ao Eterno.



segunda-feira, 15 de novembro de 2010

A casa de meus pais

"Percebo apenas a estranha ideia de família viajando através da carne."
Carlos Drummond de Andrade

A casa de meus pais exibe

o amarelo incerto do quadro.
E, na penumbra moldura,
o gesto largo dum distante viver.

(A casa pouco cabe no eterno,
e, etérea, se enterra funda –
pilar disforme do ocaso.)

No quintal funéreo, a podre carne
se planta: do laço uterino desprendido
floresce o lírio seco, a vagar,
como ermo girassol, por auroras.

Nem a flor cabe na casa – de mudas janelas.
Labirinto de infindos quartos – de cerradas portas.
Teto de estrelas cadentes a guiar últimas ceias.

Varanda aberta e clara. Como o deserto.

A casa de meus pais extingue
o colorido intenso do passado.
E no berço, insistente e adormecido fico:
no edificado sonho
da casa que nunca vivi.



segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Invisível

"[...] viver - é ser cruel e implacável com tudo o que em nós,
e não apenas em nós, se torna fraco e velho."

Friedrich Nietzsche


Não te vejo na incansável noite do chorar,

que tu tanto fazes de palco de teu sangue,
cinza agonia a escorrer dos poros do não-ser.

Meus olhos se encerram na tua noite, pois nela
apenas teu vácuo grito vaga. E cego me faço,
pois a ti restam estrelas cadentes no eco do nada.

Nego-te com as íris viúvas de tuas lágrimas,
e meu silêncio veda-lhe o choro, nefasto
vício de tua vontade de turvo tudo tornar.

Nego-te em mim, pois às luzes existo,
e deixo ao seu canto o noturno corpo:
farelos no silêncio dum desfeito viver.



terça-feira, 2 de novembro de 2010

Faço-te presente

Para Larissa Tristão

Guardo-te dentro, em papel-presente,
enquanto escasso o tempo teme o fim,
e nele risco a lembrança, laço vermelho
a, em nós, forrar de arco-íris sorrisos.

Dou ao longe a insone andança a vagar saudades,
radiosa e infante fronte a pintar presenças que
futuram o enlace de tão distantes solos.

E abro-te, despindo o agora de tua negra lonjura,
e trago-te, no laço das horas, das manhãs e das carícias,
guardadas doces no véu-presente que, insistente,
se (a)guardou num peito de criança a sonhar, eterna e cega,
o desabrochar do vasto espaço de peitos despidos no laço.