terça-feira, 26 de outubro de 2010

Velório

“A vida inteira que poderia ter sido e que não foi.”
Manuel Bandeira


E todo berço em ti jaz cova,
ferino eco de soturno corvo,
ninando escuro o Nunca-Mais.

E o tanto pouco que sobra vivo
é vago resto de roídos ossos:
podre arcada - outrora alvo lume -
a desorrir auroras em surdo réquiem.

Pois teu cego tato enterra, fundo,
fingindo tanto que, ensurdecendo-me,
da minha boca cala o sincero esmalte

e este infindo luto afunda mudo
em imunda cova, cuja estéril terra
tua palma planta e teu escasso canto
vela o peito inumo no sétimo palmo.



domingo, 24 de outubro de 2010

Os convites



Um convite restava escasso. Era comum para esses eventos chegarem aos pares, para evitar o desagradável da solitária noite, sendo também um excelente recurso para garantir a alguém o gozo do “bom dia!” na manhã seguinte. Mas, encerrado nos detalhes dourados da folha negra, o segundo convite repousava sua inconveniência e despertava o intruso incômodo em Paulo, a tentar ignorar um corpo que, ausente, assombrava-o.


Havia chegado do trabalho 19:45. Engarrafamento maior do que o de costume por conta de um jogo de futebol. Sentado na cama – desfeita desde a hora que acordou, pra evitar o trabalho de arrumar pra desfazê-la à noite – pôs-se desatenciosamente a ler a carta, por já estar ciente do conteúdo: Lançamento do livro... dia 19... 20h... E, grampeados, os convites. Ferreira Távora o conhecia bem a ponto de saber que ele não tinha ninguém pra levar ao lançamento. Era amigo de longa data de Paulo, a ponto de torná-lo mote de três poemas do seu novo livro, motivo da carta. Desde a semana passada Távora falava do lançamento, e Paulo sabe que será uma grande falta se, no domingo, não for prestigiá-lo.

Aquele segundo estranho papel com os dizeres “convite individual” tirava a pouca fome de Paulo. Lembrou de um dos trechos de um poema de Távora, A cama órfã, que leu tempos antes no blog do amigo: "Cobre-te o véu noturno do sonhar / enquanto nina longe teu mais doce sentir. / Porém teu berço enlaça a cantiga surda / do nome que em corpo jamais em ti deitará." E o outro convite, inominado. Outro. E a noite, longa. Havia alguém a chamar, mas no convite não veio a coragem, a grande falta de Paulo. Com o celular em mãos suadas e a agenda telefônica visível no display, os dedos tremem. O verde do send iluminava o quarto cuja fraca luz da luminária apontava o envelope deixado na escrivaninha. Apenas um convite, e a noite se estendia. O visor do celular diminui sua claridade enquanto Paulo mantém fixo seu olhar cego na parede. E voltam os versos, ecoados pela cama desfeita.

...

Segunda. Acordou do breve cochilo permitido pela insônia atrasado para o trabalho. Apenas se lembrou de pegar o notebook, escovar os dentes, beber um copo de leite e rapidamente vestir uma roupa. Com a cabeça dolorida, pensava no que iria dizer a Távora quando ligasse pra ele. E os convites, caídos no chão, permaneciam juntos, como vieram no envelope. Sem destino, sem nomes, individuais.



quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Desnovo



O dia cheio

De novo
De novo
De nada

Volto
Envolto
Em velha
Veste
De Um
Novo
Vir

De novo
O novo
Despe
O corpo
Insosso
Nu do ouro
Outro tolo
Fosco facho
Do belo louro
Do novo



terça-feira, 12 de outubro de 2010

A Partitura de Orfeu (ou Tocarei todas as canções)


Para Laís Rabelo

Tocarei todas as canções que peças,
mesmo que, silente, te desfaças.
Mesmo que, no descalço do amar,
o chão chacoalhe seixos da lonjura.

Tocarei todas as canções que peças,
ainda que mistério o acorde de teu peito,
ecoado na harmonia de tímidos olhos.

Tocarei todas as canções que peças,
mesmo que a mim nada peças;
teu silêncio – prenhe da maior ária –
alvora o universo que, mudo,
orquestra meu frágil canto.

Tocarei todas as canções que peças,
mesmo que a outros te dirijas.
Tu a outros arpejas notas que,
em mortos vibratos, cadentes,
dissonam tua dormida voz.

Tocarei todas as canções que peças,
mesmo que às estrelas eu toque,
rompendo o vácuo, tal trágico maestro
a romper a infinda fenda da surda súplica.

Tocarei todas as canções que peças
– as que não pedires, as que sonhares –
quando, em coro, valsas saírem do teu sorriso,
do teu gesto a reger o suave som da ternura.

Tocarei, sim, todas as canções que peças
mesmo que, num mudo Um-dia,
não mais careças que eu me dedilhe
na (ilegível) partitura de teu (en)cantar.




sábado, 9 de outubro de 2010

Campo do Adeus



Não tragas, na vaga sorte

do arado, a verdes pastos
a dura marcha do sangrar.

Não vagues em claro falso:
o tropel da louca fome,
que em veredas tanto ousa,
devasta imatura relva,
viúva da altaneira rosa.

Não plantes ferina flor,
fustigando afetos com
pétalas-coroas dos
espinhentos louros do
querer.

Não colhas o que
em ti se desfolha,
o que é em ti desfruto.
A mão, a sangrar a seca,
lavra precária o ignoto.

Pois teu arame
em labirinto ata:
rosa cinza e rubra,
do verde desvendo,
regando o desterro.



quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Miragem



Oásis vivo,

Pulsando, florido,
A virgem mata
Do Enfim-chegar.

Uma trilha tece
O desnorte turvo
De densas dunas
Do incerto.

O olho veste
O verde maior
com um sólido querer,
regando auroras.

Uma gota desce
Na certa e dura
Cova movediça
Da seca queda:

A lágrima marca,
Na deserta face,
A olvida vereda
Da desesperança

E a esmeralda aurora
Esvoaça longe, longe,
Na poeira amarela
Do eterno crepúsculo.