sábado, 25 de setembro de 2010

Porque o pranto rega.



Por que medras, se turvo o eterno,
Se débeis os olhos colhem-te
Na desvista lonjura?

Por que o deserto
De fraturadas mãos
Na escavada cor
Que frágil matiza o tempo?

Se desbotas, flor de amanhã,
Por que pétalas insistentes,
Agora de jardins?


Por que afloras, se ausente?




segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Icarus II: a decolagem



– Esqueceste a noite, nobre amigo? Sabes que estar acordado contemplando distantes brilhos não é digno de homens. Vai!, busca aquela estrela, mais próxima, cuja luz queima até a mim, isento de massa e tempo.
– Vejo que conhece a dura certeza do vácuo. Também bem o sei. Mas não se ponha a falar o insustentável, jogando ao espaço palavras que calam minha estrela. Distante, sim; porém viva, sustentando minhas retinas no trono de sua esmeralda luz.
– Suas órbitas enganam-te: percorres a gravidade do mais secreto astro.
– Não sei do que fala... Por ela percorro anos, milênios-luz! Nada mais de matérias outras.
– A procura é louvável: a propulsão do viver. Mas a gravidade... Quando a esqueceste?
– Sua voz soa-me imprecação. Por que tanto diz do que não me toca? Perceba: braços, pernas, olhos, tudo meu é liberdade. O peso anula-se em minha voadura. E ainda insiste no invisível. Observa: passo pelos frios asteroides, ineficazes vilões. O tempo se desfaz na minha ida à estrela. Minhas asas resistirão e meus braços a tocarão. Tempo e espaço morrem no que me move. E ousa apontar-me um brilho qualquer?! Deixo-o só com sua chumbada atmosfera de constrição e morte.
– Desvencilha-te dos corpos, desejando o desnorte; surdeias-te do meu alvitre, trágico homem, porém a etérea nebulosa nem te afagas. E o que teu voo impede de tocá-la?
– Apedrejo sua mão! Nego esse afago mentiroso travestido de fosco lúmen que sua desditosa voz diz ser esta estrela, indicada pelo seu podre dedo. Tenta tornar sombra meu caminho, pois então desfarei seu presságio! E de lá, longe, muito longe, verá a luz que ousasse apagar!
– A fronteira final é inexcedível. Não tornes cinzas as plumas tuas, pois um buraco negro último ninho teu serás.
– Basta de sua descrença! Deixo-o com meu ‘Adeus!’ desgastado pela sua dolorida soturnez.
– Tentei alertá-lo, homem... Tua altercação é tua ruína. Bem eu conheço a luz que te faz correr aos sonhos ofuscantes. Essa luz, amigo, cegou-me antes mesmo que pudesse acariciá-la. Esse fulgor, meu caro e resoluto caído, é tua gravidade: teu próprio peso a acorrentar-te na eterna busca; é o negrume que tudo suga, matando luz, tempo, espaço, matéria e liberdade. E se chegares próximo, muito próximo, mais até do que eu cheguei, antes da eterna noite furar-lhe as órbitas, verás que esse brilho é de um tempo que nem tu nem eu conhecemos. Perceberás que tua estrela jaz supernova, espalhando-se em milhares de outras, incluindo aquela, que aqui está, viva no seu singelo piscar, a te ver descer na mais profunda queda. Ó, inevitável queda, que no interior dos fins se faz cova! Alivia-lhe o tombo, onde o espaço se despe de brilho. Abranda-lhe a alma, que de espectro jazerá encapuzada. Ó, desgraçada luz, acalme sua fome de espelho - de rebater às orbitas deste homem tua mente estrelada! Finda a branca flama que faz do Inferno a mais alta constelação do meu estimado amigo! O mais alto voo do teu derradeiro mergulho!




sábado, 18 de setembro de 2010

O Chefe

A Jorge Dias, in memoriam


A ordem foi clara: "Terminem". Espantados pelo inesperado imperativo, todos olhavam o Chefe, que nunca foi afeito a minúcias. Atônitos, continuavam parados.

As mãos abertas, tateando ferramentas invisíveis, agora engatinham a continuidade.

Retirando-se, o Chefe ainda olhou para trás, com a discreta alegria de saber que as ferramentas realmente existiam, claros verbos, em Chefes nascituros, guiados pelo verbo, ecoado na gênese dum outro universo – interno, diverso.



domingo, 12 de setembro de 2010

O partir do sol



O gole gasto pelo desgosto fez do copo um ingrato elo. De costas para a rua e de frente ao dono do bar, Aldo desligava-se das altas vozes que exalavam a alegria em sorrisos e bebidas (derramadas ou não). Já era final da tarde, e seus três goles forçados nada afetavam sua consciência e até sua sóbria alegria tornava-se um incômodo; eram os outros, esquecidos pelas responsabilidades diárias a imperar obrigações, a rir. E a luz do dia ensaiava sua saideira, enquanto mais um amigo chegava à mesa, disposto a compensar seu atraso em cervejas e cigarros.

Todos seus, todos livres ou com os seus. E a mesa agigantava-se com o coral ébrio de todos. Aldo permanecia olhando para o copo, boiando naquele líquido que perdera o gosto e que agora, num insosso morno, apenas servia de peso inútil para as mãos. Ouvia os carros que passavam pela pequena rua e passavam perto de suas costas. Sentia Carla, entre risos e cerveja, dar-lhe beijos e carinhos. E sentia o copo pesar-lhe as mãos. Não era hora para ressacas, porém esta nunca respeitou os tímidos ensejos de Aldo. E o sol tornava-se uma condensada esfera brilhante no céu, reduzindo seu brilho.

A poucos passos estavam todos da praia, e assim decidiram contemplar o pôr-do-sol. Aldo já estava disposto a isso, tal seu desejo por solitárias mortes, e, rindo de alguns escorregões de amigos, seguiu até a murada. Todos conversavam alegremente e ressuscitavam velhas músicas que ressurgem após (muitas) doses de álcool. Mas o marulho insistia em Aldo, lembrando-o do sol. Poucas ondas, por conta da maré baixa, e algumas nuvens a acolchoar seu descanso. Aquele astro que tinha hora certa de se ir. Aquelas águas que se moviam num tranquilo fluir. E a estrela amarela, firme e lenta, repousava seu fulgor em distantes ilhas, afastada da ovação à sua partida.

Enquanto os outros tiravam fotos, alegrados pelo momento, Aldo permanecia observando o agora vazio céu, vácuo azul que agonizava nas ondas do mar. O que aclarava a beira-mar agora eram flashes saídos de uma câmera, a guardar as simpáticas faces de companheiros de vida e de brindes. E Aldo esquecia que estava entre eles enquanto, perdido, contemplava as primeiras estrelas da noite aparecendo. Ausente, foi despertado do contemplar por uma doce mão em sua nuca e um beijo no rosto; era Carla, que, na saudade imediata dos íntimos, queria-o de volta a si. E os abraços e carícias enganavam a infindável vontade.

A noite chegava junto com a partida. Aldo despede-se de todos (o sol foi o primeiro deles) e Carla, em misto de lamento e inconformismo, abraça-o longamente. Havia outras coisas a fazer, embora seu desejo fosse lá ficar. Já partindo para a longa caminhada até sua casa, deixa para trás seu copo, esquecido na murada, que tomba e cai no mar. O líquido morno mistura-se à salgada água, tornando-se vagas em uma escura noite. E o sol, numa ilha distante, escondia-se da alegre festa que fazia da noite seguro teto.



segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Uma estrela de noite esquecida



Na esvoaçante dança entre flashes
e sons altos, vagos, vários
a turvar os sentidos,
seu corpo evola o sublime
nas voltas e mãos a reger
meus instáveis olhos.

Sua voz ao meu ouvido,
silenciando céus e chãos,
sussurra um nome
e um sorriso cochicha um beijo.

Na imensidão de brilhos,
o negro espaço se faz infindo fogo
de estrelas e explosões;
tempo e luz contemplam mãos
que decalcam o infinito
em suores e arrepios.

...

Outra estrela agora surge
acordando o ingrato gosto
de ressaca. E da passada noite
apenas o vácuo de alguém
desfeito no escuro vasto
de minha memória.