quinta-feira, 24 de junho de 2010

As horas passadas no Everest


Is yesterday, tomorrow, today?
Kelly Jones (Stereophonics)

Desista. Não comece.
Tirando dos ouvidos a voz sem rosto que o manda parar, Augusto desce aliviado dos empurrões e mormaços do ônibus no qual mal espaço para a saída havia. De gentes paradas, passa agora a encontrar gentes sentadas, paradas, andantes, correntes de pessoas para todos os lados, fazendo dos passos ordeiros uma dança descompassada à procura de um chão sem pés para poder continuar a jornada. Com uma ladeira a enfrentar, continua a ouvir a voz insistente. Continue então... Discretamente olhava para os lados, num medo inútil de ser pego ouvindo o que só ele poderia ouvir. A ladeira continuava dando corda a seus passos, esticando o fôlego precário dos anos adultos, de estudos, bebidas e tristezas. A multidão descia a passos de avalanches (avalanches ao menos não têm relógios. Destroem-se sem pressa, aproveitando cada barreira no declive até o derradeiro chão.) tornava a ânsia de Augusto angústia, Por quê? e seu andar acelerava, mas sem correria, pois o fôlego e olhares outros não se sentiriam confortáveis com tal ato.


Era longa a ladeira. Longa também era a fila de carros parados na calçada, o que fazia com que automóveis e pessoas se engarrafassem na pista estreita. As lojas, com vendedores a gritar promoções ou esperar desperançados um ou outro cliente (não alguém que parasse apenas para dar uma olhada), exibiam desnecessidades para Augusto. Porém há algo que chama sua atenção em uma loja, apertada entre uma lanchonete e uma academia, que era praticamente um corredor, com um balcão logo na entrada, ocupado por uma senhora nos seus 50 anos. Augusto entra focado no que acidentalmente prendeu seu olhar: um pequeno relógio de mesa. Bom presente. Você tem bom gosto, rapaz... Não era um presente que despertasse suspiros ao ser dado, mas chamou sua atenção por ter um estilo retrô, sem perder a discrição. Ela queria um relógio pra sala. Relógio comprado e embalado, Augusto agora volta à escalada, com uma alegria inocente e envergonhada, dando gás a seus pulmões descontentes. Já estava chegando: já conseguia ver a rua transversal à da ladeira.

Abre o presente, garoto!
Sobressaltado pelo imperativo Augusto para. Olha desconfiado, acreditando ser alguém o seguindo.
Abre! É o melhor que você faz!
Porque abrir o presente se não é pra mim?
Acredite no que você ouve, e não no que o que seu desejo ecoa. E os tiques e taques?
Augusto, girando os olhos para tudo e nada, decide resolver a questão no grito.
O quê?! Do que você está falando?! Aliás, porque você, seja lá quem for, não me deixa em paz, heim?!

Na espera de respostas, apenas olhos estranhos enviesando olhares e o juízo de Augusto, que tenta disfarçar mostrando o fone do celular, pendurado em um dos ouvidos. Salvando sua civilidade com ajuda da tecnologia, continua seu caminho até a portaria de um prédio, e inquire o porteiro se há alguém no apartamento 1403. Havia.

Elevador demorado... Putz... Augusto olhava o indicador eletrônico mudar vagarosamente a numeração dos andares. A ladeira foi menos custosa, pois o coração não queria chegar antes. No andar, a capainha a anunciar a visita. Andando pelo vão do 14° andar, Augusto espera a porta abrir. Ahora, muchacho! A porta abre e a estranha voz é ignorada. Vanessa o recebe e faz as saudações corriqueiras, sabendo, mesmo sem ele ter dito, o porquê da visita. Depois de alguns minutos de conversa, Vanessa resolve lhe dizer.

– Guto, acho que minha irmã não falou contigo... Não deveria ser eu quem era pra dizer o que vou falar agora, mas é necessário. Luíza não vai mais morar aqui. Ela conseguiu passar num concurso numa universidade em BH e vai continuar por lá e, por isso, teve que voltar mais cedo pra resolver umas questões. Ela disse que iria voltar pra falar direito com o povo, mas não sei se ela vai realmente conseguir fazer isso...

Olhando a janela da sala, Augusto mantinha-se calado. Era uma vista relativamente bonita, por conta da altura em que se encontrava o prédio. Podia ver até ver o mar, mesmo com tanto cinza ocupando a vista. Via até sua casa do apartamento. Via também as pessoas, tal qual formigas, descendo inúmeras ladeiras em uma cidade de inúmeras descidas. A hora, garoto. O vento forte, tanto quanto o que balança as orlas, ressoava ao passar pela fresta da janela um pouco aberta. Havia voz e lamento no som, porém agora Augusto não ouvia nada.

Vanessa ainda falara algumas coisas enquanto Augusto olhava o presente ainda embrulhado. Pensava se deixaria lá pra quando ela voltasse ou se levaria pra casa, como lembrança de algo que se torna lembrança por guardar o não-acontecido. O vento parecia mais forte que o normal. A hora, garoto. Decidido, desembrulhou o presente. Laços desfeitos, papéis coloridos se amassando numa lixeira vazia, e um relógio. A hora, garoto. Uma batida na janela obriga Vanessa a fechá-la. Um relógio realmente antigo agora. Olhou atentamente os ponteiros: não se mexiam. Inertes, como a vista para a janela, novamente solicitada.

Depois das despedidas, Augusto junta-se à multidão que agora desce a ladeira. Apressado. Sem fôlego, sem tempo, sem rumo. Sem voz na garganta. Sem voz nos ouvidos. Sem foco, os olhos perdem-se. O ponto enche. O povo a subir, o ônibus a arrastar. Sem espaço. Sem chão. Sem o relógio que ficou no apartamento, em cima de uma mesa que se defrontava com a vista da janela. Sem o tempo, que se perdeu num passado de um ponteiro que não mais marca horas.



quarta-feira, 16 de junho de 2010

Fora


À Julianne Caribé


Cambaleando em passos tropeçados, em direção à porta. Uma cortante maçaneta se vestia de algemas para aquela estranha cadeia, de janelas convidando estrangeiras luzes para dentro. Aldo, num incontrolável desespero por conta dos passos dados pelo Fora-da-casa, fere-se ao tentar trancá-la. Nunca ele chegara tão perto da entrada. Sem esperar resposta, Fora-da-casa consegue vencer a navalha-chave que barrava o recado que o tapete dava nos dizeres “bem vindo”, colocado nos tempos de construção da fundação da casa. Estancando o sangue frio que avermelhava as mãos suadas de terror, Aldo arrasta-se nas sobras de sombras que restavam pela casa, acreditando, como criança a se cobrir dos pés à cabeça em sua cama numa noite chuvosa, estar protegido do que ele não vê. Não vira o rosto que invadiu, sem chaves ou campainhas, a casa. Perseguido por um medo sem face, íntimo e estranhamente tentador. Os olhos de Aldo buscavam Fora-da-casa, que se acobertava na luz extremamente forte que tomava a casa, como se as janelas tivessem se tornado varandas. Os olhos, sempre dilatados e receosos por conta da vida noturna da casa, queimavam no claro amarelo que definhava, cada vez mais, penumbras esgueiradas por frestas, cantos, quartos e vazios.

Mas estava escondido. Seguro. Nada o atingirá. Não havia como ser visto naquele último canto de seu lar, onde luz alguma chegou. Assim pensava Aldo quando, delicadamente, uma mão o toca no ombro. Dilatando temor, inação e fragilidade, Aldo olhava atentamente para Fora-da-casa, tentando (re)conhecer quem estava em sua frente. Mas uma estranha sombra encapuzava Fora-da-casa, única sombra que, agora, existia na casa.

Tomando a mão de Aldo, Fora-da-casa leva-o para a porta, fechada, afastando-se da entrada com alguns passos. Na maçaneta ainda se via o encrespado sangue seco de Aldo, capa que servia agora de proteção para que ele abrisse a porta. Hesitando passos num chão descalço de um homem antes trancado, Aldo segue, na tonteante luz que o ofusca, mas atrasa o passo seguinte. Olhando para trás, vê sua face desenhada em Fora-da-casa, que, expressando uma desconfortante melancolia, entra na casa, trancando-se.



sexta-feira, 4 de junho de 2010

Vende-se





I've been a miner for a heart of gold
And I'm getting old.
Neil Young


Fecho-me no amor que diariamente crio, devaneio tolo de uma vontade vagando numa fábrica de afetos, embalando caixas de carinhos. Não o megaproduto que se derrete na boca dos amorosos desesperados, que, na indomável ânsia do querer-ter, asfixiam-se nas voltas de línguas mudas pelo vácuo que sela embalagens e ouvidos. (Esse amor surdo e faminto já feriu meus lábios um dia.)

Mas singelas caixas que mal pagam uma curta propaganda. Embaladas cuidadosamente, quase artesanalmente, apesar dos gritos da fábrica. Os laços do sonho mantêm-nas fechadas, dando uma discreta beleza a algo tão simples. A preço de custo, à custa do peito. Lote de validade infinita, porém a umidade do almoxarifado da timidez e do desejo prejudica a qualidade. Se é para uma inexistente compra, não sei. Mesmo assim, os ruídos da incessante produção ainda são ouvidos.



terça-feira, 1 de junho de 2010

Frio



Pensou sozinho. Talvez um raio no meio da cabeça resolvesse isso de uma vez. Já lhe bastava a agonia de ouvir suas meias enlameadas dentro do sapato. Desistiu de sentir a chuva. O guarda-chuva, pra variar, voou na primeira brisa, deixando, de lembrança, a alça em suas mãos. O tempo cinza deixava colorido apenas a lama que escorria pelas ruas mal asfaltadas. Só o que se via era o barro. O homem caminhava lentamente. Já não importava mais sua casa. Não sabia onde ela ficava.

O tempo chuvoso deixa as pessoas mais apressadas e as ruas mais desertas do que elas já são. Gotas na cabeça. Batem ferozmente. Pedro pensava se seria melhor voltar para casa, tomar um banho quente e deitar em sua cama. Não iria conseguir. A chuva iria bater no telhado. Melhor se encharcar, pisar na lama, sujar os pés. Não tinha certeza, na verdade. Não sabia. Lembrava do que antes havia acontecido. Lembrava que aquela chuva era nada perto do que acontecera. Tinha vergonha de sentir frio. Tinha pavor de sentir frio. Queria esquecer sua casa. Ela o prendia. Antes não ouvia a chuva bater no telhado, mas agora sabe que ela não o deixará dormir. O vento baterá as janelas, as gotas continuarão batendo em sua cabeça. Nunca deixará de sentir frio.

Teve vontade de se encolher. Ergueu os braços até o peito e se abraçou. Passou por algumas pessoas abrigadas em uma loja de sapatos. Parou em frente a uma vitrine. Sapatos bonitos, novos. E o seu era barro. Ficou um bom tempo a olhar a exposição. Nenhum vendedor se aproximou. Pedro não tinha bem uma cara de cliente. Os sapatos atrás do vidro. Novos. Pedro baixou a vista e olhou os seus. Continuou baixo e olhando, sem saber.

Voltou a andar pela rua. Trombando com guarda-chuvas, Pedro apenas olhava seus sapatos. Pensava se podia ao menos comprar um outro guarda-chuva. Não resolveria? O frio continuaria, mas as gotas deixariam de crucificá-lo. – Não sei. Os passos se seguiram. O vento alimentava o frio. O abraço há muito deixou de aquecer.

Pedro para. A rua, sempre vazia, agora está desabitada. Ele olha para o céu. Olha as gotas caindo como flechas diretamente em seus olhos. A lama não saía do sapato, apesar da chuva. A rua. Pedro puxa um envelope de seu bolso, abre e o relê. ...se você ao menos me sentisse. Uma gota caía em si. O frio aumentava ainda mais. A gota escorre o seu rosto, descendo até o papel. Ele queria voltar. O frio não deixava. Pedro ouve um barulho em um toldo que cobria a frente de um prédio. Havia um mendigo que, ao vê-lo, pôs a se levantar. O frio aumentava. Pedro ficou atento ao homem que se dirigia a ele com um guarda-chuva bem velho, pelo tanto de furos que tinha nele. Mas protegia das gotas na cabeça. Chegando bem próximo, o homem nada mais fez do que lhe entregar o guarda-chuva. Assim que entregou, o mendigo se virou e voltou para a sua casa.

Pedro tentou se esconder do seu espanto, mas o guarda-chuva estava em suas mãos. Ele olhava o mendigo atentamente. O homem havia se deitado, cobrindo-se com um pano velho que mal dava para se aquecer. – Ele esteve sempre ali? Uma gota atravessa o guarda-chuva. ...se você ao menos me sentisse. As mãos tremiam descontroladamente. O frio estava insuportável. – Quero minha casa. Mas olhou pro mendigo de novo. O guarda-chuva se rasgou. As gotas são intermináveis. Pedro volta a ler a carta. Um vento súbito e forte afronta-o. A carta faz alguns tangos no céu e cai em seus sapatos. Ainda na esperança de que a carta não se suje, Pedro a pega num gesto rápido. Mas ela já estava em seus sapatos. E a lama apagou toda a tinta.