domingo, 26 de dezembro de 2010

O palhaço

“Amanhã recomeço.”
Carlos Drummond de Andrade, em O elefante.

Riscada na fronte gasta,
a escassez do borrado sorrir
pela longa e só jornada.

Vermelha, a vergonha pintada
no nariz, de estranha forma,
recuando de olhares cinzas.

Amassado nas simples vestes,
dobra-se, na recusa de poder,
no bolso esquecido da sua vontade.

Os cabelos, enrolados no inusitado,
desagradavam a ordem no desgrenho.
E o pente ria ridículos com dentes quebrados.

Os pés amarrados no sapato velho,
enterrados na poeira dos dias vagos,
e desfeitos do brilho dos saltos vivos.

Mãos grandes, desastradas, caíam nas coxas,
por perdidas estarem no O-que-agarrar?,
ritmando o olhar vagante e vazio a girar.

Sentado na longa estrada, espera. Espera.
Sonhando o maior truque, último,
guardado num pequenino bolso, discreto:

vasculhando o interior do paletó, acha,
roto e esgotado, um antigo estojo,
com seus lápis e pincéis de rosto.

Com mãos seguras, limpa do velho rosto
a seca tinta que descascava em silêncios.
Despido de restos, olha o estojo, iluminado.

Pinta a ida a um Onde?, mapeado nos traços
do arco-íris a agora emoldurar uma face que,
tímida, esboça um sorriso, amarelo. Áureo.

E assim desenha-se, rascunhando felicidades.
O toque leve do pincel traz caretas e risos
e um vermelho outro aponta no grande nariz.

Sentado ainda, olha, com olhos de infância,
o imenso vasto que o envolve. Então levanta
e move-se, seguindo para seu destino. Pulando.



O pedinte



Um querer despido deixou-te caminhar com os pés descalços

e cavar mergulhos, com leves passos, na pulsante alma.

Uma voz em grito chamou-te a orar o sopro da vida,
a no verbo edificar a morada áurea do vibrante infinito.

Um olhar em silêncio pediu-lhe a lágrima, espelhada na face
recortada das rugas do sentir só, pedinte de toque.

Um coração vasto implorou-lhe uma única semente, flor etérea,
mas descrê a oferta de tua boca aberta a jardins outros – labirintos.




quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Traga o Eterno a silentes grades

“Se puder ser maior que se confunda com o mar...”
Violins, em O Pregador


Livra-te da gota fria a traçar exílios,

a desenhar o claustro na fechada face.
A tormenta de vagas lágrimas faz náufraga
a bonança de teu azul suspirar, que sopra nas
velas nortes abertos em rosas de floridos ventos.

O triste que escorre incerto do teu ermo olhar
não é mais que espelho do que desditoso te encerra.
E o cálice que guardas, na pretensão da segura espera,
enchido do seco sofrer, a ti apenas servirá na desolada
entrega ao véu metal do esquecimento.

Dispa-te da cinza ossada e deixe, pela fresta turva
do corpo, passar vibrante o silente clarão do Infinito.



quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Soneto* do sol perdido


O nome correto da música é "Luz da Aurora"


“Uma mulher é como a própria Lua:
Tão linda que só espalha sofrimento”
Vinicius de Moraes

Chorei. E, enquanto lágrimas eu vertia,
pálpebras turvavam duras a luz.
Erma a mão secava a perda na face,
sentindo um peito no bater, vazio.

Tua boca demolia a Babel erguida
no absurdo de desejos, a ecoar,
no páramo róseo, a alta serenata
da volúpia queda no calmo azul.

Pois o astro afundava dentre dois corpos –
juntos, distantes – quando um outro brilho
fundava a noite em minha triste praia.

eras tu: sol indócil, impossível,
plantando auroras nas areias outras.
E em mim, náufraga, te punhas, silente.


* É um esboço de soneto, sem rimas e com problemas na métrica. Consertarei...
Um dia.

domingo, 12 de dezembro de 2010

A matéria da Vida



O que resta no ar é o ermo aroma

findando o presente no Eterno
éter, a matar o insustentável do Aqui-ter.

O que resta de incerto se veste,
pois o infinito não é matéria tocante,
mas o indecifrável sentir em si.

........................................................


Isso não é o que resta: poeiras passadas
decaem nas veredas da Vida. Que levam. Trazem.
Exalando o que permanece perfume, pulsante, perene.



terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Imenso mar (ou O Tempo e o Eterno)



Insistente no céu o cinza hostil
irrompia
enquanto a calma nadava no imenso mar,
de raras vagas a girar com o alto vento,
fronteirando frágil as gládias naturezas.


O Tempo banhava-se no horizonte azul, de ignorada fundura,
fazendo sua misteriosa luz boiar infinita
e ferir a fria cor do sombrio páramo, de náufraga aurora.
Tirânico, o Eterno trovejava a noite de secas tormentas,
com o perdido chovendo no mar o morto olvido.

O horizonte rachava-se no triste embate:
a fúria celeste cavava os vagalhões titânicos,
golpeando com raios vácuos os braços do Tempo.

E, voando no ar, gritos do fogo e da procela.

O milenar paredão, cúmplice meu, murmura
em mim a dor ecoada de suas fendas.
As areias, meu repouso, são a morte da grande rocha,
escavadas pela amplidão das eras.
Sopros trazem a secura da guerra à pedra, cortando-lhe
a pele, e rajadas de vazio descem do espaço, fazendo verter
de um corpo morto as cinzas do Eterno cego.

Afundo-me na areia, incerto.
Com a face dura, impenetrável.
Descalço de fé, seco de unção,
esquecido da Hora.

Lembrado somente pelo rochedo de cínzeo pó,
cuja ossada é a cova aberta nas ruínas dos milênios –
onde enterro-me, ausente de mar, surdo de estrelas.



sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Os cães tristes

"...e esse silêncio a prender-me a vista no que resta."


Prendidos em gastas grades, os olhos
cansados vagueiam a rua movimentada.
E as passadas urbanas espalham-se
na interminável rua cinza
como as manchas a tingir os pêlos.
(A gasta penugem de raras carícias
era o duro asfalto a marcar o tempo.)

E, presos, viam os carros, sem correr atrás.
Presos, viam cadelas, sem uivar em torno.
Presos, viam estranhos a gaiola silente.

Sentados, pousados em caudas imóveis,
esgotados da longa espera, paralisados.
Passantes encaravam, estalavam dedos,
moviam-se e, indiferentes, os cachorros
permaneciam, distanciando a vida.

E, onde estavam, a casa era o espelho da multidão de sós.

Mesmo aberto o portão enferrujado,
parados permaneciam.
A rua ousava cada passo no turbilhão humano,
e parados se restavam.

Pois o faro guarda apenas o cheiro do ferro gasto
a marcar de frio o mais inocente latir
e turvar-lhes as claras íris, quase brancas,
com vermelho que tinge a mais dura grade
em peitos que apenas olham, tristes.



domingo, 28 de novembro de 2010

Quando valsares

"Por não te possuir, tendo-te minha
Por só quereres tudo, e eu dar-te nada
Hei de lembrar-te sempre com ternura."
Vinicius de Moraes


Quando valsares, peças desculpas à Matéria,

por ferires limites e superfícies.
(Desconhecida ela se faz da tua sinfonia.)

Quando valsares, lamentes pelo ar,
que rouba, viciado, o cantar de teu perfume.
Na delícia do sopro teu ritmo descansa.

Quando valsares, ignores o chão torpe,
raiz do mundo frio e injusto,
de olhos cinzas à sua doce dança.

Quando valsares, não chores por outros
que lhe trombam com a rocha do silêncio.
(São ouvidos mortos, de ermas vagâncias.)

Quando valsares, não digas nada para ti:
conheces bem a música que marca teu peito.
Teu corpo, de pés bailarinos, pulsa maiores auroras.

Quando valsares, apenas Valsa sejas.
A murcha substância do marchar definha
no teu eteno passo, a entoar o Tempo e ecoar a Vida.



quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Quando despe o segredo a carne

"De tão sentir o amor não sei dizer-to,
Antes, se falo, só dos prados falo
E em dueto comigo
Discurso o amor."
Ricardo Reis


O incauto peito, outrora escondido em azuis venturas,

agora tem despido o segredo, e inversos
de um estranho receio envolvem a inevitável nudez.

O despudor desfila clareiras em um corpo
que, no labirinto da trágica ânsia pela veste
fria, cobria-se do ornamento claustro do eu.

Cruel o vento ergue os pêlos, indomáveis células do sentir,
tingindo o vermelho no corpo agora coberto de si.
No sopro a passear pela vasta relva rubra, olhos desfilam
na viva terra, e o castanho olhar semeia-se.

O receio desfolha-se esvoaçante no avivar,
no plantar na pele, que pulsa, vibrante e aberta,
na comunhão com o incontido da descoberta:
no germinar de corpos – tornados fulminantes –,
floresce o grande campo do mais desnudo Desejo.



sábado, 20 de novembro de 2010

Talvez deva eu aprender com o instante

"A Eternidade é muito longa.
E dentro dela tu te moves, eterno."

Cecília Meireles

Talvez deva eu aprender com o instante

o que deveras falso se eterniza ausente
e findar a passada erma em obscura trilha.
Porém errante e incauto insisto – des(a)tino.

Os passos, instantes de descompassado solo,
calçam as pegadas do etéreo urdir:
pulsante e vaga, a ponte ergue-se rota
e o incerto sopra a derradeira queda.

O instante é tábua frouxa da trágica
ponte, que distante me faz do outro lado.
E, errante, a caminhada persiste, em si,
silente e tímida, em temerosos embalos.

Mas (per)sigo. Que cada pisar seja lato campo
de fofa terra; que cada andar seja a breve brisa
da fatal queda, esquecida e vivida no voo
de pés que de calos elevam-se ao Eterno.



segunda-feira, 15 de novembro de 2010

A casa de meus pais

"Percebo apenas a estranha ideia de família viajando através da carne."
Carlos Drummond de Andrade

A casa de meus pais exibe

o amarelo incerto do quadro.
E, na penumbra moldura,
o gesto largo dum distante viver.

(A casa pouco cabe no eterno,
e, etérea, se enterra funda –
pilar disforme do ocaso.)

No quintal funéreo, a podre carne
se planta: do laço uterino desprendido
floresce o lírio seco, a vagar,
como ermo girassol, por auroras.

Nem a flor cabe na casa – de mudas janelas.
Labirinto de infindos quartos – de cerradas portas.
Teto de estrelas cadentes a guiar últimas ceias.

Varanda aberta e clara. Como o deserto.

A casa de meus pais extingue
o colorido intenso do passado.
E no berço, insistente e adormecido fico:
no edificado sonho
da casa que nunca vivi.



segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Invisível

"[...] viver - é ser cruel e implacável com tudo o que em nós,
e não apenas em nós, se torna fraco e velho."

Friedrich Nietzsche


Não te vejo na incansável noite do chorar,

que tu tanto fazes de palco de teu sangue,
cinza agonia a escorrer dos poros do não-ser.

Meus olhos se encerram na tua noite, pois nela
apenas teu vácuo grito vaga. E cego me faço,
pois a ti restam estrelas cadentes no eco do nada.

Nego-te com as íris viúvas de tuas lágrimas,
e meu silêncio veda-lhe o choro, nefasto
vício de tua vontade de turvo tudo tornar.

Nego-te em mim, pois às luzes existo,
e deixo ao seu canto o noturno corpo:
farelos no silêncio dum desfeito viver.



terça-feira, 2 de novembro de 2010

Faço-te presente

Para Larissa Tristão

Guardo-te dentro, em papel-presente,
enquanto escasso o tempo teme o fim,
e nele risco a lembrança, laço vermelho
a, em nós, forrar de arco-íris sorrisos.

Dou ao longe a insone andança a vagar saudades,
radiosa e infante fronte a pintar presenças que
futuram o enlace de tão distantes solos.

E abro-te, despindo o agora de tua negra lonjura,
e trago-te, no laço das horas, das manhãs e das carícias,
guardadas doces no véu-presente que, insistente,
se (a)guardou num peito de criança a sonhar, eterna e cega,
o desabrochar do vasto espaço de peitos despidos no laço.



terça-feira, 26 de outubro de 2010

Velório

“A vida inteira que poderia ter sido e que não foi.”
Manuel Bandeira


E todo berço em ti jaz cova,
ferino eco de soturno corvo,
ninando escuro o Nunca-Mais.

E o tanto pouco que sobra vivo
é vago resto de roídos ossos:
podre arcada - outrora alvo lume -
a desorrir auroras em surdo réquiem.

Pois teu cego tato enterra, fundo,
fingindo tanto que, ensurdecendo-me,
da minha boca cala o sincero esmalte

e este infindo luto afunda mudo
em imunda cova, cuja estéril terra
tua palma planta e teu escasso canto
vela o peito inumo no sétimo palmo.



domingo, 24 de outubro de 2010

Os convites



Um convite restava escasso. Era comum para esses eventos chegarem aos pares, para evitar o desagradável da solitária noite, sendo também um excelente recurso para garantir a alguém o gozo do “bom dia!” na manhã seguinte. Mas, encerrado nos detalhes dourados da folha negra, o segundo convite repousava sua inconveniência e despertava o intruso incômodo em Paulo, a tentar ignorar um corpo que, ausente, assombrava-o.


Havia chegado do trabalho 19:45. Engarrafamento maior do que o de costume por conta de um jogo de futebol. Sentado na cama – desfeita desde a hora que acordou, pra evitar o trabalho de arrumar pra desfazê-la à noite – pôs-se desatenciosamente a ler a carta, por já estar ciente do conteúdo: Lançamento do livro... dia 19... 20h... E, grampeados, os convites. Ferreira Távora o conhecia bem a ponto de saber que ele não tinha ninguém pra levar ao lançamento. Era amigo de longa data de Paulo, a ponto de torná-lo mote de três poemas do seu novo livro, motivo da carta. Desde a semana passada Távora falava do lançamento, e Paulo sabe que será uma grande falta se, no domingo, não for prestigiá-lo.

Aquele segundo estranho papel com os dizeres “convite individual” tirava a pouca fome de Paulo. Lembrou de um dos trechos de um poema de Távora, A cama órfã, que leu tempos antes no blog do amigo: "Cobre-te o véu noturno do sonhar / enquanto nina longe teu mais doce sentir. / Porém teu berço enlaça a cantiga surda / do nome que em corpo jamais em ti deitará." E o outro convite, inominado. Outro. E a noite, longa. Havia alguém a chamar, mas no convite não veio a coragem, a grande falta de Paulo. Com o celular em mãos suadas e a agenda telefônica visível no display, os dedos tremem. O verde do send iluminava o quarto cuja fraca luz da luminária apontava o envelope deixado na escrivaninha. Apenas um convite, e a noite se estendia. O visor do celular diminui sua claridade enquanto Paulo mantém fixo seu olhar cego na parede. E voltam os versos, ecoados pela cama desfeita.

...

Segunda. Acordou do breve cochilo permitido pela insônia atrasado para o trabalho. Apenas se lembrou de pegar o notebook, escovar os dentes, beber um copo de leite e rapidamente vestir uma roupa. Com a cabeça dolorida, pensava no que iria dizer a Távora quando ligasse pra ele. E os convites, caídos no chão, permaneciam juntos, como vieram no envelope. Sem destino, sem nomes, individuais.



quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Desnovo



O dia cheio

De novo
De novo
De nada

Volto
Envolto
Em velha
Veste
De Um
Novo
Vir

De novo
O novo
Despe
O corpo
Insosso
Nu do ouro
Outro tolo
Fosco facho
Do belo louro
Do novo



terça-feira, 12 de outubro de 2010

A Partitura de Orfeu (ou Tocarei todas as canções)


Para Laís Rabelo

Tocarei todas as canções que peças,
mesmo que, silente, te desfaças.
Mesmo que, no descalço do amar,
o chão chacoalhe seixos da lonjura.

Tocarei todas as canções que peças,
ainda que mistério o acorde de teu peito,
ecoado na harmonia de tímidos olhos.

Tocarei todas as canções que peças,
mesmo que a mim nada peças;
teu silêncio – prenhe da maior ária –
alvora o universo que, mudo,
orquestra meu frágil canto.

Tocarei todas as canções que peças,
mesmo que a outros te dirijas.
Tu a outros arpejas notas que,
em mortos vibratos, cadentes,
dissonam tua dormida voz.

Tocarei todas as canções que peças,
mesmo que às estrelas eu toque,
rompendo o vácuo, tal trágico maestro
a romper a infinda fenda da surda súplica.

Tocarei todas as canções que peças
– as que não pedires, as que sonhares –
quando, em coro, valsas saírem do teu sorriso,
do teu gesto a reger o suave som da ternura.

Tocarei, sim, todas as canções que peças
mesmo que, num mudo Um-dia,
não mais careças que eu me dedilhe
na (ilegível) partitura de teu (en)cantar.




sábado, 9 de outubro de 2010

Campo do Adeus



Não tragas, na vaga sorte

do arado, a verdes pastos
a dura marcha do sangrar.

Não vagues em claro falso:
o tropel da louca fome,
que em veredas tanto ousa,
devasta imatura relva,
viúva da altaneira rosa.

Não plantes ferina flor,
fustigando afetos com
pétalas-coroas dos
espinhentos louros do
querer.

Não colhas o que
em ti se desfolha,
o que é em ti desfruto.
A mão, a sangrar a seca,
lavra precária o ignoto.

Pois teu arame
em labirinto ata:
rosa cinza e rubra,
do verde desvendo,
regando o desterro.



quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Miragem



Oásis vivo,

Pulsando, florido,
A virgem mata
Do Enfim-chegar.

Uma trilha tece
O desnorte turvo
De densas dunas
Do incerto.

O olho veste
O verde maior
com um sólido querer,
regando auroras.

Uma gota desce
Na certa e dura
Cova movediça
Da seca queda:

A lágrima marca,
Na deserta face,
A olvida vereda
Da desesperança

E a esmeralda aurora
Esvoaça longe, longe,
Na poeira amarela
Do eterno crepúsculo.



sábado, 25 de setembro de 2010

Porque o pranto rega.



Por que medras, se turvo o eterno,
Se débeis os olhos colhem-te
Na desvista lonjura?

Por que o deserto
De fraturadas mãos
Na escavada cor
Que frágil matiza o tempo?

Se desbotas, flor de amanhã,
Por que pétalas insistentes,
Agora de jardins?


Por que afloras, se ausente?




segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Icarus II: a decolagem



– Esqueceste a noite, nobre amigo? Sabes que estar acordado contemplando distantes brilhos não é digno de homens. Vai!, busca aquela estrela, mais próxima, cuja luz queima até a mim, isento de massa e tempo.
– Vejo que conhece a dura certeza do vácuo. Também bem o sei. Mas não se ponha a falar o insustentável, jogando ao espaço palavras que calam minha estrela. Distante, sim; porém viva, sustentando minhas retinas no trono de sua esmeralda luz.
– Suas órbitas enganam-te: percorres a gravidade do mais secreto astro.
– Não sei do que fala... Por ela percorro anos, milênios-luz! Nada mais de matérias outras.
– A procura é louvável: a propulsão do viver. Mas a gravidade... Quando a esqueceste?
– Sua voz soa-me imprecação. Por que tanto diz do que não me toca? Perceba: braços, pernas, olhos, tudo meu é liberdade. O peso anula-se em minha voadura. E ainda insiste no invisível. Observa: passo pelos frios asteroides, ineficazes vilões. O tempo se desfaz na minha ida à estrela. Minhas asas resistirão e meus braços a tocarão. Tempo e espaço morrem no que me move. E ousa apontar-me um brilho qualquer?! Deixo-o só com sua chumbada atmosfera de constrição e morte.
– Desvencilha-te dos corpos, desejando o desnorte; surdeias-te do meu alvitre, trágico homem, porém a etérea nebulosa nem te afagas. E o que teu voo impede de tocá-la?
– Apedrejo sua mão! Nego esse afago mentiroso travestido de fosco lúmen que sua desditosa voz diz ser esta estrela, indicada pelo seu podre dedo. Tenta tornar sombra meu caminho, pois então desfarei seu presságio! E de lá, longe, muito longe, verá a luz que ousasse apagar!
– A fronteira final é inexcedível. Não tornes cinzas as plumas tuas, pois um buraco negro último ninho teu serás.
– Basta de sua descrença! Deixo-o com meu ‘Adeus!’ desgastado pela sua dolorida soturnez.
– Tentei alertá-lo, homem... Tua altercação é tua ruína. Bem eu conheço a luz que te faz correr aos sonhos ofuscantes. Essa luz, amigo, cegou-me antes mesmo que pudesse acariciá-la. Esse fulgor, meu caro e resoluto caído, é tua gravidade: teu próprio peso a acorrentar-te na eterna busca; é o negrume que tudo suga, matando luz, tempo, espaço, matéria e liberdade. E se chegares próximo, muito próximo, mais até do que eu cheguei, antes da eterna noite furar-lhe as órbitas, verás que esse brilho é de um tempo que nem tu nem eu conhecemos. Perceberás que tua estrela jaz supernova, espalhando-se em milhares de outras, incluindo aquela, que aqui está, viva no seu singelo piscar, a te ver descer na mais profunda queda. Ó, inevitável queda, que no interior dos fins se faz cova! Alivia-lhe o tombo, onde o espaço se despe de brilho. Abranda-lhe a alma, que de espectro jazerá encapuzada. Ó, desgraçada luz, acalme sua fome de espelho - de rebater às orbitas deste homem tua mente estrelada! Finda a branca flama que faz do Inferno a mais alta constelação do meu estimado amigo! O mais alto voo do teu derradeiro mergulho!




sábado, 18 de setembro de 2010

O Chefe

A Jorge Dias, in memoriam


A ordem foi clara: "Terminem". Espantados pelo inesperado imperativo, todos olhavam o Chefe, que nunca foi afeito a minúcias. Atônitos, continuavam parados.

As mãos abertas, tateando ferramentas invisíveis, agora engatinham a continuidade.

Retirando-se, o Chefe ainda olhou para trás, com a discreta alegria de saber que as ferramentas realmente existiam, claros verbos, em Chefes nascituros, guiados pelo verbo, ecoado na gênese dum outro universo – interno, diverso.



domingo, 12 de setembro de 2010

O partir do sol



O gole gasto pelo desgosto fez do copo um ingrato elo. De costas para a rua e de frente ao dono do bar, Aldo desligava-se das altas vozes que exalavam a alegria em sorrisos e bebidas (derramadas ou não). Já era final da tarde, e seus três goles forçados nada afetavam sua consciência e até sua sóbria alegria tornava-se um incômodo; eram os outros, esquecidos pelas responsabilidades diárias a imperar obrigações, a rir. E a luz do dia ensaiava sua saideira, enquanto mais um amigo chegava à mesa, disposto a compensar seu atraso em cervejas e cigarros.

Todos seus, todos livres ou com os seus. E a mesa agigantava-se com o coral ébrio de todos. Aldo permanecia olhando para o copo, boiando naquele líquido que perdera o gosto e que agora, num insosso morno, apenas servia de peso inútil para as mãos. Ouvia os carros que passavam pela pequena rua e passavam perto de suas costas. Sentia Carla, entre risos e cerveja, dar-lhe beijos e carinhos. E sentia o copo pesar-lhe as mãos. Não era hora para ressacas, porém esta nunca respeitou os tímidos ensejos de Aldo. E o sol tornava-se uma condensada esfera brilhante no céu, reduzindo seu brilho.

A poucos passos estavam todos da praia, e assim decidiram contemplar o pôr-do-sol. Aldo já estava disposto a isso, tal seu desejo por solitárias mortes, e, rindo de alguns escorregões de amigos, seguiu até a murada. Todos conversavam alegremente e ressuscitavam velhas músicas que ressurgem após (muitas) doses de álcool. Mas o marulho insistia em Aldo, lembrando-o do sol. Poucas ondas, por conta da maré baixa, e algumas nuvens a acolchoar seu descanso. Aquele astro que tinha hora certa de se ir. Aquelas águas que se moviam num tranquilo fluir. E a estrela amarela, firme e lenta, repousava seu fulgor em distantes ilhas, afastada da ovação à sua partida.

Enquanto os outros tiravam fotos, alegrados pelo momento, Aldo permanecia observando o agora vazio céu, vácuo azul que agonizava nas ondas do mar. O que aclarava a beira-mar agora eram flashes saídos de uma câmera, a guardar as simpáticas faces de companheiros de vida e de brindes. E Aldo esquecia que estava entre eles enquanto, perdido, contemplava as primeiras estrelas da noite aparecendo. Ausente, foi despertado do contemplar por uma doce mão em sua nuca e um beijo no rosto; era Carla, que, na saudade imediata dos íntimos, queria-o de volta a si. E os abraços e carícias enganavam a infindável vontade.

A noite chegava junto com a partida. Aldo despede-se de todos (o sol foi o primeiro deles) e Carla, em misto de lamento e inconformismo, abraça-o longamente. Havia outras coisas a fazer, embora seu desejo fosse lá ficar. Já partindo para a longa caminhada até sua casa, deixa para trás seu copo, esquecido na murada, que tomba e cai no mar. O líquido morno mistura-se à salgada água, tornando-se vagas em uma escura noite. E o sol, numa ilha distante, escondia-se da alegre festa que fazia da noite seguro teto.



segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Uma estrela de noite esquecida



Na esvoaçante dança entre flashes
e sons altos, vagos, vários
a turvar os sentidos,
seu corpo evola o sublime
nas voltas e mãos a reger
meus instáveis olhos.

Sua voz ao meu ouvido,
silenciando céus e chãos,
sussurra um nome
e um sorriso cochicha um beijo.

Na imensidão de brilhos,
o negro espaço se faz infindo fogo
de estrelas e explosões;
tempo e luz contemplam mãos
que decalcam o infinito
em suores e arrepios.

...

Outra estrela agora surge
acordando o ingrato gosto
de ressaca. E da passada noite
apenas o vácuo de alguém
desfeito no escuro vasto
de minha memória.



terça-feira, 24 de agosto de 2010

Cristal



Um copo que pouco importava na mesa de um tranquilo bar. Havia sido deixado pelo garçom, que se passou no número dos confrades. Típico vidro que aparentava ter sido antes recipiente para algum requeijão ordinário ou outro produto qualquer, levantando a incerteza de sua original função. Pois lá estava vazio: ninguém chegaria para dar serventia ao desnecessário objeto, tampouco alguém da mesa lembraria sua presença. Os cuidados se voltavam a copos cheios e garrafas a somarem-se ao pé da mesa e na bandeja do garçom, solicito por conta do entusiasmo dos clientes. A sua sincera transparência tornava-o invisível, útero infértil, vazio em sua morta alegria. Por mais que estivesse ali.

Uma mão aproxima-se cuidadosamente e, resoluta, segura o copo disposta a preenchê-lo. O tédio ébrio fez do vidro seco vaso, agora tonto no suor frio da esperança de uma gota, ao menos. O tato quente tirava o gelado da espera na mesa cambaia, tal qual cadeira de balanço a guiar os velhos entre passado e presente pelas casas antigas. A boca, sempre aberta, parecia agora sorrir, vendo a garrafa inclinar-se para depositar parte de seu interior.

Porém o descuido: a mão, na confusa embriaguez, perde-se na coordenação motora e na falta de firmeza. A garrafa ainda deixa pingar gotas na borda do copo que, inevitavelmente, desliza pela palma, rola pela mesa – inutilmente amparado por outras mãos –, e se desfaz no chão, espalhando os restos por cantos incertos, que a vassoura não achará.

Segundos de atenção são roubados pelo copo: os presentes na mesa, recuperados do susto, fazem as costumeiras graças daqueles que, na alegria inebriante do álcool, não pensam em restos e cortes. A mesa continua a abrigar garrafas e brindes. E algumas gotas ainda escorrem dela, pingando no cimento um brilho que se confunde com estilhaços do frágil copo.



sábado, 21 de agosto de 2010

A Grand Rave




Cortado o Ser foi do cordão umbilical da ludibriante mãe Fortuna, que, desnaturada, ninava o Indivíduo ao embalo de um suave réquiem. Órfãos do completo, equilibristas caídos do Telos: os cacos de um agonizante eu agora se diluem esparsamente nas lágrimas do incerto e se distorcem nas batidas surdas de luzes e delírios de uma grande festa. A linha que ritmava a humanidade é sua forca, com seu nó sendo atado na curva do vazio, grande cosmos a orquestrar o efêmero dos cadentes.

Nas cavernas discotecadas, onde as sombras agora dançam com luzes negras ao som do trance, Platão frita ao sabor de sua estragada bala de Ideias. Cópias e sombras virtualizam as roupas de gala da criação, desnudando o original no seu raquítico e anêmico corpo, hilária verdade que se perdeu na primeira caverna.

E assim brinda-se o frágil sabor do instante, cantado pelo coreto dos liquefeitos restos daqueles que bebem.




Porém, um breve brinde. Pois, na Grand Rave, os alcoolizados de si dançam em círculos ao som do psy-pós-réquiem, buscando a conexão com um virtual Nirvana, enquanto a lama, com a desconcertante dança, transmuta-se no barro da Descriação.



quinta-feira, 12 de agosto de 2010

O toque de nuvens



As mãos buscavam alcançar aquela alegre ilusão. As nuvens e o céu, detalhadamente pintados, despiam o teto do quarto do fosco branco que comumente serve de proteção para cabeças mundanas. Nos deslimites da inocência, o bebê buscava estranhas formas que nadavam naquele mar imóvel, mas de beleza estonteante. Sem saber o que é mar, forma, pintura ou distância, ele tateava; via o quarto ser inteiramente iluminado e refletir o seu sorriso ainda sem dentes.

Os olhos, estrelas brilhantes em explosões de descobertas, não se desprendiam do céu. Sempre ali. Sempre azul. E a criança ignorou que havia grades em seu berço: acariciava o infinito com suas miúdas mãos.

Leia ao som de O voo da pomba, de Milladoiro.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Amantes



O vermelho que tingia trajes íntimos ficara no chão, sobrepondo-se a um jeans surrado. No ar rubro, evolava-se a incandescência de olhos embaçados pela inebriante fumaça. O incêndio, antes guardado em costumeiras vestes, despe o desejo, agora livre. Não havia janelas, olhares, tempo ou espaço – sumiram na chama; nada havia além de duas brasas batendo dentro de dois corpos: magma incendiando o mundo e que, nas cinzas do amanhã, manter-se-á acesa como centelha da memória de uma viva vontade.




segunda-feira, 26 de julho de 2010

Partida



As malas sempre são pensadas com antecedência. A porta aberta do guarda-roupa lembra, a cada momento, a alma de Laura despida da coragem de separar o que pretende levar. Os dias passam e algumas peças, penduradas em cabides já marcados, lembravam-na da tarefa descomeçada. Agora malas, abertas e jogadas na cama, ecoam o passado que, costurado em partes íntimas, públicas, acessórias e fundamentais, espalham-se pelo quarto e pela vida de uma garota que numa aventura trágica escolheu outro lugar para viver.

Com a porta do quarto trancada para evitar incômodos, Laura começa a separar o que poderá levar. Era outro estado, sem parentes ou amigos a recebê-la. A euforia inicial do desconhecido foi fulminante; nova vida, agora universitária, agora só, agora sua. Animava-se pela sua semi-independência, já que a asa dos pais agora surgia apenas para cobrir as despesas. Era responsável e séria – eles e ela tinham convicção disso –, mas o fogo da alegria apagou-se no vento volteante da insegurança. Ela sabia, e ninguém mais, que mãos carinhosas, de tão leves, agora acenarão um “adeus” que será difícil de tirar da sua bagagem.

Ventava bastante. A janela, folgada pelo tempo, batia a cada sopro. As frestas assobiavam a chuva que estava a chegar. As roupas de cama já estavam dobradas e arrumadas em uma das malas, assim como utensílios de higiene pessoal, já que estes são os primeiros a serem lembrados tardiamente, já no meio da viagem. A lista feita pela mãe era acompanhada religiosamente, como uma prece, sem nenhum verso a ser pulado ou embolado. Mas havia itens que não constavam: estes que, secretos, não se anotam em qualquer papel de lembretes. Já separados em cima da estante, seriam colocados por último, depois do que era ordinário.

As roupas resgatavam memórias perdidas; as linhas, bordados e jeans rasgados rompiam o uivo do vento que ecoava no quarto e trazia vozes e risos que, guardados no esquecido do passado, agora se tornam claros acenos do viver. Cada roupa carrega os (des)gostos de uma vida que estava aqui. – Aqui. Cada roupa era colocada vagarosamente na mala, acariciada para evitar possíveis amassos.

Fora da mala, restavam as fotos e os presentes tiradas e trazidos na festa de despedida. Se havia espaço para colocá-las, era incerto. Laura tentou organizá-las por cima das roupas, porém a bagagem não fechava. A mala de livros já estava abarrotada, com o cadeado reforçando a tranca. Mas as lembranças não poderiam ficar. Porém, assim como o coração, as malas, nos seus vazios a serem preenchidos, carregam a ilusão de tudo poder conter. E a janela batia, gemendo a passagem das horas e a chuva a cair.

Sentada na cama, ao lado da última mala aberta, Laura acompanha a chuva a escorrer pela janela. As despedidas foram ontem, com amigos e família. Mas essa alegria forçada, feito cócegas em feridas, revolvia o estômago, prenhe de uma saudade. Olhava agora o que ficou separado, na estante, impedido de viajar. Aduana implacável, a vida tenta barrar o passado clandestino, que se esconde num excesso que todo peito custa a levar.

– Algumas malas fecham-se como caixões, lacrando algo que, sem uma memória a assinar a certidão de nascimento, apodrece sem a redenção de outra vida. Pensava nisso Laura ao ver um livro de seu pai sobre cultura no Egito antigo, que estava largado na estante. Voltava a olhar a estante ocupada pelos presentes. O vento continuava, forte, a gritar pelos finos cantos entre a janela e a parede, e todas as malas, arrumadas e fechadas, enfileiravam-se no chão, próximas à porta do quarto, aberta.



sexta-feira, 23 de julho de 2010

Longo voo II



Asas indomáveis, de elevados sonhos –

travessia num mar de vagas etéreas.
O céu ofusca a visão, que acredita ser tato.
Na fluida imensidão do querer,
A mão que arrisca o toque se perde.

Uma pena, a perder-se no azul
vagarosamente
dança ao som do descompassado vento.
E a mão, aberta, a esperar.

Gotas pesam a pena, delicada massa
que, insistente, mantém-se lenta na queda.
E a mão, aberta, a suar ansiedades.

A chuva encharca o que o voo deixou cair
e a dança se desfaz na queda suicida:

a pena, afogada, resta numa mão, fechada.


Para ler 'Longo voo', clique aqui.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Olhos nos olhos

À professora Cássia Lopes

As sombras decalcavam o denso verde na terra, fértil de uma incontida vida a brotar de sua maciez – uma vida que borbulhava na água da chuva recém caída. E as luzes, driblando as frestas de folhas, apontavam as trilhas que na mata se escondiam. Estava perdido na imensidão a desnortear seus passos. Talvez nunca saísse de dentro da floresta, mas se põe andar. Passará por sombras e claridades ofuscantes, guiado por passos que não mais calçam trilhas marcadas pelo seco barro. Pois seus pés estão encharcados, assim como os olhos, que espelham um úmido verde.



quinta-feira, 8 de julho de 2010

O funeral



Os olhos, num distante vazio, desfocavam os retratos espalhados pela estante. E a mão, úmida do frio pavor, deixa escorregar a pistola, que tomba, ainda quente, no piso. No desconcertante arfar, o corpo, a tremer, descontrolava os sentidos e deixava-se cair no chão, próximo à arma. Perfumes caem também, derramando, no ar, aromas – queimados pela pólvora.

Lutando contra o desespero, Fernando usa as mãos perdidas para se apoiar e levantar-se. A moldura, ao chão, despia o espelho, agora estilhaçado, cujas fraturas desfiguram a inocente criança, outrora gravada num retrato de infância, que tempo e mofo amarelaram. O primeiro disparo atingira o passado, pendurado numa parede. O segundo, destinado à têmpora, mas guiado pela fraqueza dos irresolutos suicidas, acabou indo direto ao espelho.

Os olhos irreconhem o que enxergam no mosaico. Embora a visão se queira moldura, há reflexos perdidos. E uma bala, solitária, resta no pente, fazendo estilhaços e disparos ecoarem numa face morta.



domingo, 4 de julho de 2010

Inundado



As gotas a infiltrar o concreto fazem poças na casa recém aberta. A preocupação com a chuva, antes de sair, ficou apenas nas janelas fechadas: esquecidos os baldes na dispensa, poças refletem a luz da sala que acabo de acender. Olho rastros de água desenhados na parede, que, insistentes, ignoram a parada da chuva.


Os baldes, agora espalhados pela casa, enchem-se de pingos perdidos. Estava só. Mas um corpo ausente fazia eco no vazio da casa e de baldes que demorariam horas para serem enchidos. Seu aroma simples, exalando, no lugar do perfume, o doce existir, se prolonga na saudade muda, afinada com a sinfonia da água.

Sim, os baldes demorariam até silenciarem todas as goteiras da casa. Mas esta se enchia de outras gotas, caladas, desenhando um sabor que eu nunca pudera sentir. E era esse gosto o interminado cheiro. Um intocável seio a inundar um incurável veio que escorre de um concreto corpo, cunhado a sangue e cinza.



sexta-feira, 2 de julho de 2010

Nuit



A porta se fecha
e o olho, prendido,
a perder-se no teto
de desfocado vazio.

A cama range,
afinando os ossos
de um corpo oco
em voltas insones.

Um corpo encolhe
em forma de feto.
Fundada a noite,
o frio se faz.

O peito se abre
ninando o ido:
desperto está,
deserto virá.

O corpo se cobre,
na pausa do tempo,
dum sonho eterno
que de dia é olvido.

O sonho no sono
se figura em vida,
silenciando dores
dum vazio acordar.




quinta-feira, 24 de junho de 2010

As horas passadas no Everest


Is yesterday, tomorrow, today?
Kelly Jones (Stereophonics)

Desista. Não comece.
Tirando dos ouvidos a voz sem rosto que o manda parar, Augusto desce aliviado dos empurrões e mormaços do ônibus no qual mal espaço para a saída havia. De gentes paradas, passa agora a encontrar gentes sentadas, paradas, andantes, correntes de pessoas para todos os lados, fazendo dos passos ordeiros uma dança descompassada à procura de um chão sem pés para poder continuar a jornada. Com uma ladeira a enfrentar, continua a ouvir a voz insistente. Continue então... Discretamente olhava para os lados, num medo inútil de ser pego ouvindo o que só ele poderia ouvir. A ladeira continuava dando corda a seus passos, esticando o fôlego precário dos anos adultos, de estudos, bebidas e tristezas. A multidão descia a passos de avalanches (avalanches ao menos não têm relógios. Destroem-se sem pressa, aproveitando cada barreira no declive até o derradeiro chão.) tornava a ânsia de Augusto angústia, Por quê? e seu andar acelerava, mas sem correria, pois o fôlego e olhares outros não se sentiriam confortáveis com tal ato.


Era longa a ladeira. Longa também era a fila de carros parados na calçada, o que fazia com que automóveis e pessoas se engarrafassem na pista estreita. As lojas, com vendedores a gritar promoções ou esperar desperançados um ou outro cliente (não alguém que parasse apenas para dar uma olhada), exibiam desnecessidades para Augusto. Porém há algo que chama sua atenção em uma loja, apertada entre uma lanchonete e uma academia, que era praticamente um corredor, com um balcão logo na entrada, ocupado por uma senhora nos seus 50 anos. Augusto entra focado no que acidentalmente prendeu seu olhar: um pequeno relógio de mesa. Bom presente. Você tem bom gosto, rapaz... Não era um presente que despertasse suspiros ao ser dado, mas chamou sua atenção por ter um estilo retrô, sem perder a discrição. Ela queria um relógio pra sala. Relógio comprado e embalado, Augusto agora volta à escalada, com uma alegria inocente e envergonhada, dando gás a seus pulmões descontentes. Já estava chegando: já conseguia ver a rua transversal à da ladeira.

Abre o presente, garoto!
Sobressaltado pelo imperativo Augusto para. Olha desconfiado, acreditando ser alguém o seguindo.
Abre! É o melhor que você faz!
Porque abrir o presente se não é pra mim?
Acredite no que você ouve, e não no que o que seu desejo ecoa. E os tiques e taques?
Augusto, girando os olhos para tudo e nada, decide resolver a questão no grito.
O quê?! Do que você está falando?! Aliás, porque você, seja lá quem for, não me deixa em paz, heim?!

Na espera de respostas, apenas olhos estranhos enviesando olhares e o juízo de Augusto, que tenta disfarçar mostrando o fone do celular, pendurado em um dos ouvidos. Salvando sua civilidade com ajuda da tecnologia, continua seu caminho até a portaria de um prédio, e inquire o porteiro se há alguém no apartamento 1403. Havia.

Elevador demorado... Putz... Augusto olhava o indicador eletrônico mudar vagarosamente a numeração dos andares. A ladeira foi menos custosa, pois o coração não queria chegar antes. No andar, a capainha a anunciar a visita. Andando pelo vão do 14° andar, Augusto espera a porta abrir. Ahora, muchacho! A porta abre e a estranha voz é ignorada. Vanessa o recebe e faz as saudações corriqueiras, sabendo, mesmo sem ele ter dito, o porquê da visita. Depois de alguns minutos de conversa, Vanessa resolve lhe dizer.

– Guto, acho que minha irmã não falou contigo... Não deveria ser eu quem era pra dizer o que vou falar agora, mas é necessário. Luíza não vai mais morar aqui. Ela conseguiu passar num concurso numa universidade em BH e vai continuar por lá e, por isso, teve que voltar mais cedo pra resolver umas questões. Ela disse que iria voltar pra falar direito com o povo, mas não sei se ela vai realmente conseguir fazer isso...

Olhando a janela da sala, Augusto mantinha-se calado. Era uma vista relativamente bonita, por conta da altura em que se encontrava o prédio. Podia ver até ver o mar, mesmo com tanto cinza ocupando a vista. Via até sua casa do apartamento. Via também as pessoas, tal qual formigas, descendo inúmeras ladeiras em uma cidade de inúmeras descidas. A hora, garoto. O vento forte, tanto quanto o que balança as orlas, ressoava ao passar pela fresta da janela um pouco aberta. Havia voz e lamento no som, porém agora Augusto não ouvia nada.

Vanessa ainda falara algumas coisas enquanto Augusto olhava o presente ainda embrulhado. Pensava se deixaria lá pra quando ela voltasse ou se levaria pra casa, como lembrança de algo que se torna lembrança por guardar o não-acontecido. O vento parecia mais forte que o normal. A hora, garoto. Decidido, desembrulhou o presente. Laços desfeitos, papéis coloridos se amassando numa lixeira vazia, e um relógio. A hora, garoto. Uma batida na janela obriga Vanessa a fechá-la. Um relógio realmente antigo agora. Olhou atentamente os ponteiros: não se mexiam. Inertes, como a vista para a janela, novamente solicitada.

Depois das despedidas, Augusto junta-se à multidão que agora desce a ladeira. Apressado. Sem fôlego, sem tempo, sem rumo. Sem voz na garganta. Sem voz nos ouvidos. Sem foco, os olhos perdem-se. O ponto enche. O povo a subir, o ônibus a arrastar. Sem espaço. Sem chão. Sem o relógio que ficou no apartamento, em cima de uma mesa que se defrontava com a vista da janela. Sem o tempo, que se perdeu num passado de um ponteiro que não mais marca horas.



quarta-feira, 16 de junho de 2010

Fora


À Julianne Caribé


Cambaleando em passos tropeçados, em direção à porta. Uma cortante maçaneta se vestia de algemas para aquela estranha cadeia, de janelas convidando estrangeiras luzes para dentro. Aldo, num incontrolável desespero por conta dos passos dados pelo Fora-da-casa, fere-se ao tentar trancá-la. Nunca ele chegara tão perto da entrada. Sem esperar resposta, Fora-da-casa consegue vencer a navalha-chave que barrava o recado que o tapete dava nos dizeres “bem vindo”, colocado nos tempos de construção da fundação da casa. Estancando o sangue frio que avermelhava as mãos suadas de terror, Aldo arrasta-se nas sobras de sombras que restavam pela casa, acreditando, como criança a se cobrir dos pés à cabeça em sua cama numa noite chuvosa, estar protegido do que ele não vê. Não vira o rosto que invadiu, sem chaves ou campainhas, a casa. Perseguido por um medo sem face, íntimo e estranhamente tentador. Os olhos de Aldo buscavam Fora-da-casa, que se acobertava na luz extremamente forte que tomava a casa, como se as janelas tivessem se tornado varandas. Os olhos, sempre dilatados e receosos por conta da vida noturna da casa, queimavam no claro amarelo que definhava, cada vez mais, penumbras esgueiradas por frestas, cantos, quartos e vazios.

Mas estava escondido. Seguro. Nada o atingirá. Não havia como ser visto naquele último canto de seu lar, onde luz alguma chegou. Assim pensava Aldo quando, delicadamente, uma mão o toca no ombro. Dilatando temor, inação e fragilidade, Aldo olhava atentamente para Fora-da-casa, tentando (re)conhecer quem estava em sua frente. Mas uma estranha sombra encapuzava Fora-da-casa, única sombra que, agora, existia na casa.

Tomando a mão de Aldo, Fora-da-casa leva-o para a porta, fechada, afastando-se da entrada com alguns passos. Na maçaneta ainda se via o encrespado sangue seco de Aldo, capa que servia agora de proteção para que ele abrisse a porta. Hesitando passos num chão descalço de um homem antes trancado, Aldo segue, na tonteante luz que o ofusca, mas atrasa o passo seguinte. Olhando para trás, vê sua face desenhada em Fora-da-casa, que, expressando uma desconfortante melancolia, entra na casa, trancando-se.



sexta-feira, 4 de junho de 2010

Vende-se





I've been a miner for a heart of gold
And I'm getting old.
Neil Young


Fecho-me no amor que diariamente crio, devaneio tolo de uma vontade vagando numa fábrica de afetos, embalando caixas de carinhos. Não o megaproduto que se derrete na boca dos amorosos desesperados, que, na indomável ânsia do querer-ter, asfixiam-se nas voltas de línguas mudas pelo vácuo que sela embalagens e ouvidos. (Esse amor surdo e faminto já feriu meus lábios um dia.)

Mas singelas caixas que mal pagam uma curta propaganda. Embaladas cuidadosamente, quase artesanalmente, apesar dos gritos da fábrica. Os laços do sonho mantêm-nas fechadas, dando uma discreta beleza a algo tão simples. A preço de custo, à custa do peito. Lote de validade infinita, porém a umidade do almoxarifado da timidez e do desejo prejudica a qualidade. Se é para uma inexistente compra, não sei. Mesmo assim, os ruídos da incessante produção ainda são ouvidos.



terça-feira, 1 de junho de 2010

Frio



Pensou sozinho. Talvez um raio no meio da cabeça resolvesse isso de uma vez. Já lhe bastava a agonia de ouvir suas meias enlameadas dentro do sapato. Desistiu de sentir a chuva. O guarda-chuva, pra variar, voou na primeira brisa, deixando, de lembrança, a alça em suas mãos. O tempo cinza deixava colorido apenas a lama que escorria pelas ruas mal asfaltadas. Só o que se via era o barro. O homem caminhava lentamente. Já não importava mais sua casa. Não sabia onde ela ficava.

O tempo chuvoso deixa as pessoas mais apressadas e as ruas mais desertas do que elas já são. Gotas na cabeça. Batem ferozmente. Pedro pensava se seria melhor voltar para casa, tomar um banho quente e deitar em sua cama. Não iria conseguir. A chuva iria bater no telhado. Melhor se encharcar, pisar na lama, sujar os pés. Não tinha certeza, na verdade. Não sabia. Lembrava do que antes havia acontecido. Lembrava que aquela chuva era nada perto do que acontecera. Tinha vergonha de sentir frio. Tinha pavor de sentir frio. Queria esquecer sua casa. Ela o prendia. Antes não ouvia a chuva bater no telhado, mas agora sabe que ela não o deixará dormir. O vento baterá as janelas, as gotas continuarão batendo em sua cabeça. Nunca deixará de sentir frio.

Teve vontade de se encolher. Ergueu os braços até o peito e se abraçou. Passou por algumas pessoas abrigadas em uma loja de sapatos. Parou em frente a uma vitrine. Sapatos bonitos, novos. E o seu era barro. Ficou um bom tempo a olhar a exposição. Nenhum vendedor se aproximou. Pedro não tinha bem uma cara de cliente. Os sapatos atrás do vidro. Novos. Pedro baixou a vista e olhou os seus. Continuou baixo e olhando, sem saber.

Voltou a andar pela rua. Trombando com guarda-chuvas, Pedro apenas olhava seus sapatos. Pensava se podia ao menos comprar um outro guarda-chuva. Não resolveria? O frio continuaria, mas as gotas deixariam de crucificá-lo. – Não sei. Os passos se seguiram. O vento alimentava o frio. O abraço há muito deixou de aquecer.

Pedro para. A rua, sempre vazia, agora está desabitada. Ele olha para o céu. Olha as gotas caindo como flechas diretamente em seus olhos. A lama não saía do sapato, apesar da chuva. A rua. Pedro puxa um envelope de seu bolso, abre e o relê. ...se você ao menos me sentisse. Uma gota caía em si. O frio aumentava ainda mais. A gota escorre o seu rosto, descendo até o papel. Ele queria voltar. O frio não deixava. Pedro ouve um barulho em um toldo que cobria a frente de um prédio. Havia um mendigo que, ao vê-lo, pôs a se levantar. O frio aumentava. Pedro ficou atento ao homem que se dirigia a ele com um guarda-chuva bem velho, pelo tanto de furos que tinha nele. Mas protegia das gotas na cabeça. Chegando bem próximo, o homem nada mais fez do que lhe entregar o guarda-chuva. Assim que entregou, o mendigo se virou e voltou para a sua casa.

Pedro tentou se esconder do seu espanto, mas o guarda-chuva estava em suas mãos. Ele olhava o mendigo atentamente. O homem havia se deitado, cobrindo-se com um pano velho que mal dava para se aquecer. – Ele esteve sempre ali? Uma gota atravessa o guarda-chuva. ...se você ao menos me sentisse. As mãos tremiam descontroladamente. O frio estava insuportável. – Quero minha casa. Mas olhou pro mendigo de novo. O guarda-chuva se rasgou. As gotas são intermináveis. Pedro volta a ler a carta. Um vento súbito e forte afronta-o. A carta faz alguns tangos no céu e cai em seus sapatos. Ainda na esperança de que a carta não se suje, Pedro a pega num gesto rápido. Mas ela já estava em seus sapatos. E a lama apagou toda a tinta.




domingo, 23 de maio de 2010

Aguarde um momento



No olhar perdido, escalando paredes e tetos e buscando um eco numa linha muda, a procura do júbilo no happy end do roteiro pré-moldado e parado em silêncio e devaneio. Nem música ou gravação: o inesperado valsa ora com a esperança, ora com a impaciência – irmãs fratricidas –, desconcertando o homem no calar-se da linha. Ponteiros, girando na tontura do tempo, tornam a dança cada vez mais veloz. O braço já se cansa e a orelha insistentemente coça. Mas outra mão dá apoio. Outros ouvidos se agoniam na mudez, fronteira de duas vozes. E um fio interminável costura tatos na espera do toque, na espera de sussurros.



terça-feira, 18 de maio de 2010

Quarto de brinquedos



Não... Sei a que custo arrasto

esse boneco espedaçado.
Sei que sou um caco,
colando passos de onde
você não andou.

Vão é esse apego ao tato
falso da fantasia,
onde insisto em me desfazer.

Mas seu desejo não é abrigo,
meu devaneio não é seu grito,
esse falso afeto não é amor.

E eu me tranco em meu quarto
de brinquedos de amores
e você joga bola na vidraça de
meus frágeis sonhos;
eu me dou corda na vontade
de um beijo de bom dia
e não dou bola pra sua rosa bailarina.
Mas eu não brinco só.



Mais autoconfiança e mais outra música. =)

sábado, 15 de maio de 2010

Ponteiros e encontros



I

Padrasto do conhecer,
o Tempo, em marcha incerta,
faz dos fios do convívio
trincheiras do estranho.

Tirania trilhada no
transversado olho,
no silêncio do ignoto,
inimigo, ingrato e outro.


II

Pedaço do conviver,
o Tempo ata,
nas veias do laço,
a vereda dos sorrisos.

No ritmo do acaso,
tatos poucos tocam-se
no singelo segredo
do infindo apego.


III

Outro espelho
reflexo refratado
retrato resquício

cravado no peito
lavado de afeto
banhado em ira
vertendo sangue
no pulsar das horas

no ofertar da Vida.




quinta-feira, 13 de maio de 2010

Propaganda enganosa



Minha mãe nunca estava satisfeita com o que fazia.

Minha irmã achava que o mundo era um completo ‘sim’.
Meu pai era uma distante sombra de ordem e obediência.

E toda manhã a margarina da propaganda lambuzava a mesa
na esperança de que ao menos sorrisos amarelos surgissem.



segunda-feira, 10 de maio de 2010

O Anonimado



A oculta letra,

rabiscada no estranho desfacetado,
no escuro espelho:
disforme
nos reflexos do sentir.

As molduras do vidro,
outra pele a cortar infinitos
na ilusão do pleno,
tingem a imagem
com o indizível cinza
do silêncio.

Retrato silente
na mudez do traço:

invisível ao corpo

que no reflexo se desvê.

Invisível ao outro
que no desejo se quer ver.



domingo, 9 de maio de 2010

O ilhado



Perdido em uma garrafa errante na insana tormenta, parecia esconder uma alegria naquela canção, escrita num papel amassado dentro do vidro viajante. Embora errante e muda: o mar, nas suas vagas, velava o som com um silêncio azul. Resgatado por barcos quaisquer, o frasco, nada tendo de especial, era logo arremessado novamente ao oceano, continuando a vagar na ilusória bonança da esperança. A sinfonia silente segredava um ‘sim’ a um sorriso, ao sonho, ao que, na ilha, não havia – por mais que outros teimassem em ser habitantes dela. Nem o solitário habitante lembrava ao certo da canção, rabiscada em leves traços numa folha improvisada. Precário vidro, frágil página de um outro frágil, sentado debaixo de um coqueiro, enjoado pelas voltas do mar e murmurando trechos da fragmentada música: pedaços de notas nadando no mar das vontades, mergulhando em um íntimo escondido nas areias do esperar.



"Intacto"




Não fizeram grandes planos ou fugas homéricas. Ao menos marcaram pra sair. Num banco, ao som de folhas, pássaros e serrotes sanfonando numa obra inacabada, sentaram-se. Nem perguntas ou risadas. Estavam agora acesos por outra inocência, desajeitada e perdida no infinito dos desejos. No escorregar da timidez, os olhos encontravam o chão, pernas a tremer e rostos. E, repousando-se um no outro, o silêncio do agora, ecoando o calor dos singelos carinhos.


terça-feira, 4 de maio de 2010

Sussurros


Liberdade na vida é ter um amor pra se prender.

Fabrício Carpinejar


A falta de ar, germinando vida

no pulso arrítmico das palavras.

O peito estala os longos versos
de um sentir profundo e pleno

e uma voz embaçada de carícias
sopra calafrios, úmidos toques

desconcertando o frio do sonho
no bálsamo ardente dos corpos.



sábado, 1 de maio de 2010

Acróstico apocrifamente pedagógico



Falácia na fala profética, beijando

As almas bem-aventuradas, cravadas em
Cruzes arrastadas pelo santo ofício
E entregues aos desmandos da Legião mestra:
Demônio vestido de utopia, vestindo Cristos no ermo Inferno.



quarta-feira, 21 de abril de 2010

Eterno incerto retorno


Ainda canto o ido o tido o dito

O dado o consumido
O consumado
Ato
Do amor morto motor da saudade
Caetano Veloso


A infeliz certeza do precário eco de um “se”
ressoa nas fraturas do sorrir.

Vozes voltam a velar vícios
de voltas vagas de devaneios:

a vida, nas voltas ao corpo,
tirando folga do vazio só.

.......................................................................

A dor que se fez canto
em insônia faz-se hino.

Uma lágrima,
pingando os “is” de risos e carinhos
nas memórias do aqui.

Um rio, vertendo versos
num longe aqui.




sexta-feira, 16 de abril de 2010

A caverna



O eco infindo no oco,
grito em escura gruta,
e o tato cego a apagar
certezas nos vultos de
esperanças.

Desfeito nas abissais
do vazio, o chão desdiz
a saída

nas voltas de um peito
a desver luzes,
seguindo sombras
de um estranho pulsar –
fora, dentro, outro.




sexta-feira, 9 de abril de 2010

Peito aberto



Mesmo quando os olhos

voltam-se ao negro leito
do peito rachado,
ainda há o vermelho
manchando o escuro

som de ecos, passados,
de partidas, dores ferindo
um sonho insone
de um outro despertar

e sentir a dor
de olhos abertos:
não se desfazer

em restos de sonhos
gastos por lembranças
de vãs esperanças.

O peito pode até doer,
mas é ele quem pulsa;
o peso pode até te parar,
mas o passo é seu pulso.


Provavelmente mais uma letra de música guardada no fundo de uma pasta zipada.


quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Circuito oval



incompleto. Era a licença para seu andar manco, pendente para um estranho lado. Peso silente, o peito desequilibra a rua ordeira e passageira nos descaminhos do homem. O sinal, as buzinas, placas, ordens; sinais. As voltas, vozes, fardos, vidros, fatos e a vida a furar o sinal vermelho. Era o breque que o peito cadente almejava para ordenar seu eixo; luz da cor do que escorre da quase-queda – devia parar? O verde agora iluminava uma corrida, queimando a largada de alguém que mal viu o rubro brilho apresentar suas lembranças. Alguém que, nas voltas dos ponteiros, momentos, lamentos e das praças, caía para um lado vazio, de sonhos engarrafados. Voltava a sentir-se



segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Pensamento dos dias parte 14



Caído, o pirulito. O choro chato da criança, na esperança da desqueda. Assim são lágrimas: caem no desejo de que façam subir sorrisos do sujo chão.

E o lamento a transbordar, deixando nas mãos apenas um plástico colorido, outrora embalagem de uma doce fortuna.





terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Glosa sobre a Saudade



Há versos que não devem ser escritos.
Cortinas de lamentos enclausuram o corpo num triste escuro.

Alguém que se foi,
uma longa partida,
um peito partido,
nada disso merece a elegia.

Esses versos, amigo, faz do volátil pedra
que insistentemente afunda o corpo num profundo maremoto.

O seu coração bate.
Ainda bate.

Não escreva tais versos, pois a saudade não é gaiola aberta
chorando por um passarinho que voou.

Não escreva tais versos, pois a cortina, densa de lã fria,
ainda deixa passar, numa fina brecha de luz,
o canto de um pássaro amarelo

que não cessa de cantar
num peito partido.

É a vida a cantar, meu caro,
e a saudade é a alegre lágrima
de um outro viver, longe,

ecoando os raios de um infindo voo.



quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

O presente



A festa, a fome, a forra, a farra:

Mãos estapeiam salgados –
farelos na toalha de mesa
depondo a tirania materna.
A criançada dava seu presente.

E, nas voltas rotas das dobras,
o segredo tonteando o tato.
– Venha partir o bolo, menino!
As mãos tapavam os ouvidos
no passeio cego do toque.

– Não vai comer nada?
Estava envolvido pelo laço azul
num tempo cinza e de barrancos.

A embalagem cobria a laje da chuva.
Um cartão, pequeno, com breves letras,
antecipando o pequeno trator amarelo:

É com um desses que seu pai está fazendo nossa casa.
Te amo.

e aquela esperança amarela
no sorriso do menino,
que se alimentava dos farelos
na mesa de doces.



sábado, 9 de janeiro de 2010

O quarto



Refúgio e castigo. Crianças sabem bem como essas palavras se misturam: a janela quebrada por uma bola, a resposta mal-educada, e a ida escondida pro quarto. Fuga incerta, punição certa – toda mãe sabe o caminho do cômodo.

Da infância, trazemos o fique em seu quarto e pense no que você fez, ordem que vibra o fio do tempo: mesmo findados os sons do passado, reverberam seus ecos no presente. Retiro e martírio para a consciência, o quarto é daqueles lugares em que a reflexão fadiga o corpo. A paz se desfaz quando o corpo pousa na cama, quando se pensa nas janelas quebradas dos dias. Estampidos de palmadas e vozes adultas modulam-se em uma voz que, calada, consegue tirar o sono. Pensa-se no que deveria ter sido feito ou dito, um breve devaneio para disfarçar o claustro da realidade, fechado por muros de ecos.

Um gesto não dado, parado no conforto da indiferença, fez do meu quarto o confissionário da noite. Era um dia cheio de atividades e impaciência; dentro de um ônibus, partia para comprar algumas roupas em um shopping, pois as festas de fim de ano estavam chegando e, apesar da má vontade, o tédio venceu e fui aos trombos da multidão consumidora. Na ida, dentro de um ônibus no meio de um engarrafamento, como de costume, havia um vendedor lutando por uma noite feliz, oferecendo canetas aromatizadas. Não me interessava nenhuma delas (é costume de professor ter caneta até demais), então voltei a olhar os carros parados no engarrafamento. Durante seu monólogo, o vendedor passava pelas cadeiras, oferecendo o material de venda para os passageiros, para que eles segurassem. Mera tática para que a possibilidade de compra seja maior. Como não é do meu feitio deixar minhas anotações com cheiro de morango (não sou adepto à escrita cor-de-rosa), recusei a oferta do comerciante, assim como todos os outros no ônibus. Voltando a olhar a movimentação dentro do ônibus, noto que, nem criança a pedir à mãe, nem uma adolescente para deixar seu caderno (mais) clorido, ninguém ao menos pegou o pacote com duas canetas e um salmo da Bíblia para segurar.

Vendo a indiferença guiando os passageiros, o vendedor, não conseguindo fixar seu olhar em um ponto e segurando nas mãos um dos seus produtos, disse, em voz travada por vergolha e gagueira: sei que nem todos querem um desses e nem devem se sentir obrigados a comprar, mas pelo menos segurem. Pois assim sei que vocês me ouvem.

Dito isso, pediu para que o motorista abrisse a porta de saída do ônibus e desceu.

Cheguei a meu destino, fiz o que deveria ser feito, mas a fala do vendedor dissonava a bossa nova que ecoava no shopping, acompanhada de vozes da multidão. Já em casa, olhando para meu estojo, lotado de canetas azuis e vermelhas (inodoras), continuava a lembrar do fato no ônibus. Um ato insignificante – até mecânico ultimamente –, que é segurar os produtos oferecidos pelos vendedores, forrou de desconforto minha cama. Um homem colocando uma fatia de sua esperança na mão de indiferentes estranhos. Mesmo se ninguém fosse comprar, mas, ao menos segurasse esse saco, sua jornada como vendedor, que também tem uma ceia para fazer, que também tem filhos que pedem presentes a Papai Noel, poderia seguir, já que esses sacos não voltariam vazios. Ele também tinha seu quarto, onde os ecos do passado batem em sua porta. Mas, no coletivo, a viagem é individual: o outro é um passageiro em pé desejando sua poltrona. E o vendedor era uma voz distante, sem corpo. Alguém que não se segura pela mão, tendo que, assim, descer do ônibus antes do ponto.

No quarto, volto a me sentir como aquela criança que, depois da malcriação, corre para seu cômodo, como se pudesse fugir do erro. Abriria uma papelaria com o número de canetas que desejo comprar, mas não há mais negócio, e sim a dívida. Resta o saco de compras, as roupas novas, largadas pela cama esperando uma vaga no lotado guarda-roupa, notas fiscais. E o estojo, fechado, como minha boca.

A bronca, em silêncio, dá seus passos e bate na porta.



domingo, 3 de janeiro de 2010

Insone



O ombro mudo

do travesseiro abraçado,
cochichando sonhos.

Cobertor repousando
o carinho de mãos distantes.

A cama range a ferrugem
das lágrimas da memória

e murmúrios do peito
apenas a ninar
o vácuo da noite.