A noite estava pesadamente escura. A 4ª Bachiana ressoava por todo o teatro. Todos os espectadores, trajados elegantemente, como o ambiente pedia, saíam satisfeitos. Era uma área high class, como muitos diziam lá. Ouviam-se saltos altos, celulares tocando, motoristas particulares chegando. Mas alguma coisa mantinha a Bachiana ressoante naquele lugar.
Havia um mendigo na porta do teatro. Encolhido, pois o vento era muito forte. Era um período de chuva. Os espectadores comentavam sobre a beleza que eram as peças de Vila-Lobos. “Dava orgulho de ser brasileiro, ao ouvi-lo”; era o que alguns diziam, resumindo o pensamento de todos que estavam no teatro. O mendigo continuava lá fora. Não poderia compartilhar da mesma opinião. A fome e a falta de panos não o deixaram ouvir a orquestra. Ouvia apenas a indiferença que saia dos espectadores. Gestos, falas, sorrisos que não eram para o pedinte. A Bachiana era tão bela...
O vento ficava cada vez mais forte. O tempo, mais fechado. Guardas-chuva se abrem. O mendigo se encolhe, olhando para os lados. Não há lugar para se proteger. Ele levanta. Receoso, tentando se cobrir com o pouco de pano e papelão que tinha em mãos, se aproxima da entrada principal do teatro. Tenta conseguir pelo menos alguns papelões a mais ou um espacinho no teatro até passar a chuva. Os espectadores se entreolham. Torcem bocas e olhares, aumentando o frio no homem estranho que aparecera. Um segurança, ainda se aproximando, gesticula para o mendigo se afastar. Ali não era lugar para ele. O farrapo nem ao menos se explicar conseguiu. Empurrado e abatido, volta para a rua.
A chuva ficou mais forte. Começava a respingar nos espectadores que estavam na porta do teatro. Eles entraram para se proteger, apesar do concerto já ter acabado. Só um homem estava lá fora. Não dava pra ver o rosto dele. A chuva era mais forte. Devia haver lágrimas marcando o compasso da Bachiana, mas ninguém ouvia. Talvez a Bachiana do mendigo não precisasse mais de choros. A sua regência era eterna. Os espectadores continuavam a conversar e a elogiar o espetáculo. “Como um homem inseria tanta brasilidade na música erudita? Era esplendoroso!”. Eles só pensavam na Bachiana.
O mendigo, ainda na porta, olhou novamente para os lados na esperança de achar um abrigo. Seu papelão e sua roupa já estavam ensopados. Ele começava a se tremer. O frio aumentara, assim como o vento. Voltou-se para o teatro. Alguns espectadores olhavam, talvez mais preocupados com seus motoristas que demoravam a chegar. Alguns até comentavam sobre o mendigo. O homem da rua, que não sabia mais para onde olhar (sua cabeça estava abaixada), ergue suas mãos tremidas pelo frio até o peito e as junta. Após isso, ele vagarosamente se ajoelha. Não havia mais para onde olhar. O céu estava fechado. E o chão escondia sua vergonha.
Os espectadores se espantam. Não se ouve mais elogios. Nem a chuva era ouvida. Apenas um choro regendo um prelúdio. Prelúdio este que não acabava. Ecoava em cada dia desse homem ajoelhado, mesmo sem ele nunca ter pisado em um teatro.
O prelúdio ganha um novo regente. Não há gestos graciosos de um maestro, mas sim duas mãos trêmulas, unidas e encostadas ao peito. Os espectadores começaram a ouvir, de verdade, a Bachiana. Lágrimas acompanhavam a sinfonia ouvida por aqueles que o teatro sempre deixara de fora. A Bachiana era muito mais conhecida para o mendigo do que para os espectadores. Ela o tocou primeiro. E ele não quis ouvi-la. Era ele o maestro, agora, e os espectadores sentiam a triste regência escorrer entre gotas de chuva e lágrimas. As súplicas que nunca foram ouvidas, as moedas que nunca foram dadas, um espaço não cedido para que a chuva não o molhasse, lágrimas que nem com a força dos céus conseguiam ser ouvidas. Agora a Bachiana fazia com que aqueles que estavam dentro do teatro ouvissem o maestro. Ouvissem suas lágrimas.
Mas, ainda assim, os espectadores continuavam dentro do teatro, e o mendigo, fora. Alguns saíam pelos fundos do teatro, outros passavam pela escada que o mendigo se encontrava. O segurança não tinha mais coragem de tirá-lo de lá. Ninguém tinha coragem de, ao menos, olhar para ele. A chuva escorreu a dignidade de todos. A chuva escondia o rosto de todos. O maestro conseguiu comover sua platéia. Mas as palmas não vieram. Todos olhavam para baixo. O prelúdio se eternizou.
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